domingo, 30 de outubro de 2011

Algumas regras, muita leitura e um bom dicionário

Por: Adilson Alves - Colunista do Jornal Gazeta do Povo

Segunda-feira passada (17/10), depois de ter cumprido meu ritual matutino de me atualizar lendo este jornal e os destaques dos sites de notícias, tive coragem de dar uma olhada na minha coluna (Erro grosseiro...Português grosseiro). Lá pelas tantas me deparei com esta afirmação: “Há uma regra que pode nos ajudar: esse “en” antes de “ch” é um prefixo: chiqueiro/enchiqueirar e charco/encharcar. O mesmo não se dá, por exemplo, com enxoval e enxada”.

Ok. A afirmação não está tecnicamente errada e a regra, de fato, se aplica a boa parte das palavras do tipo “enchiqueirar”, na qual “en” é prefixo (en+chiqueiro+ar). E não se aplica a palavras como “enxoval”.

Só que tem um problema: nas palavras “enxadrezado” e “enxaguar” o “en” também é prefixo. Os dois vocábulos são derivados de “xa­­drez” e “água”, respectivamente.

Assim, cabe perguntar: será que essa regra pode nos ajudar mesmo?

Talvez sim. Sobretudo pessoas que gostam de pesquisar etimologia de palavras, que têm um excelente domínio do nosso léxico. Mas, nesse caso, convenhamos que a regrinha vai se tornar desnecessária uma hora ou outra. Como regra, o melhor caminho é investirmos na leitura, o meio mais poderoso e produtivo de fixarmos a grafia das palavras. Sem desprezarmos, é claro, regras eficientes, que aprendemos nas primeiras sentadas que damos nos bancos escolares. Por exemplo, aquela sobre o uso de “m” e não “n” antes de “b” e “p” (ambulância e competição). Mas notem: por que não “competissão”? Temos “discutir/discussão” e “competir/competição”.

Nada de desespero!

Quando ficamos na dúvida, é só consultar um bom dicionário. Não é feio, nem desonroso. É sinal de cuidado, de curiosidade, de profissionalismo. Além de ser um divertido passatempo. Fica a dica de dois disponíveis na internet: o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp) e o excelente iDicionário Aulete.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Os robôs não nos invejam mais

Livro mostra que, diante das classificações psiquiátricas, seríamos todos “doentes mentais” e alerta para a medicalização da vida cada vez mais cedo – transformando o ser humano da pós-modernidade numa espécie de “homo automaticus"

Por: Elaine Brum - Colunista da Revista Época

Os primeiros robôs da ficção tinham um conflito: eles eram criados e programados para dar respostas automáticas e objetivas, mas queriam algo vital e complexo. Em algum momento, às vezes por uma falha no sistema, eles passavam a desejar. E desejar algo que lhes era negado: subjetividade. Condenados às respostas previsíveis, revoltavam-se contra a sua natureza de autômato. Humanizar-se, sua aspiração maior, significava sentir angústia, tristeza, amor, raiva, alegria, dúvida e confusão. Os robôs da modernidade queriam, portanto, a vida – com suas misérias e contradições. Ao entrar em conflito e ao desejar, os robôs já não eram mais robôs, mas um algo em busca de ser. Um ser humano, portanto. A partir desta premissa, grandes clássicos da ficção científica da modernidade foram construídos, como O Homem Bicentenário, de Isaac Asimov, que depois virou o filme estrelado por Robin Williams.

Hoje, a pós-modernidade nos encontra em uma situação curiosa: os humanos querem se tornar robôs. Cada vez um número maior de pessoas se oferece em sacrifício, imolando sua vida humana, ao deixar-se encaixar em alguma patologia vaga do manual das doenças mentais e medicalizar o seu cotidiano para se enquadrar em uma pretensa normalidade. E assim dar as respostas “certas”.

Para quê? Ou para quem?

Basta olhar ao redor com alguma atenção para perceber que, nas mais variadas esferas do nosso cotidiano, esperam-se respostas automáticas e objetivas. Seja na área amorosa e no “desempenho” sexual, seja no comportamento profissional. Até mesmo dos bebês espera-se que atendam às classificações previstas nos muitos compêndios sobre o que esperar de um filhote humano a cada fase. Vivemos no mundo dos manuais de todos os tipos, difundidos pelo mercado editorial e reproduzidos e amplificados pela mídia, que nos ensinariam um “modo de nos usar”, com o objetivo de alcançar um tipo específico e previamente anunciado de resultado.

Dar respostas automáticas e objetivas diante de situações determinadas nos daria um lugar no mundo dos “normais”. E dos bem-sucedidos, já que hoje a normalidade é determinada por um tipo particular de sucesso. Tornar-se robô na vã tentativa de apagar a subjetividade humana é, portanto, o que uma parte da humanidade ocidental tem desejado para si – e se esforçado para impor aos filhos. E nisso tem a ajuda decisiva da indústria farmacêutica, que possivelmente nunca tenha ganhado tanto dinheiro com psicofármacos como hoje, e de um certo tipo de profissional da medicina que manipula o “Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - DSM-IV)” como uma Bíblia.

A tese acima é o ponto de partida de um livro muito interessante lançado há pouco, chamado “O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea” (Via Lettera). A obra é organizada por Alfredo Jerusalinsy e Silvia Fendrik, dois dos mais brilhantes psicanalistas da atualidade. Mas, entre os nove autores brasileiros, nove argentinos, um mexicano e um francês, não há apenas psicanalistas, mas também psiquiatras, neurologistas e pesquisadores da área da neurociência. Em alguns capítulos a linguagem é árida, e a obra se beneficiaria de uma edição mais rigorosa e cuidada. Ainda assim, o tema é irresistível e a leitura abre muitas janelas de reflexão. Em certa medida, o livro responde às provocações de outra obra, “O Livro Negro da Psicanálise” (Civilização Brasileira), em que a psicanálise é violentamente atacada como “charlatanismo”. Mas, como os autores anunciam – e cumprem – “O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea” não é um mero contra-ataque, o que serviria apenas para empobrecer um dos debates mais relevantes da nossa época. E sim uma excelente oportunidade para discutir com inteligência e profundidade algo que diz respeito a todos nós.

Afinal, não é o caso de demonizar a indústria farmacêutica e a psiquiatria, como se tivessem o poder superior de nos fazer acreditar que os sentimentos e as contradições inerentes à condição humana constituíssem um estorvo dos quais fosse preciso se livrar com a maior rapidez possível. Tampouco radicalizar afirmando que os medicamentos não têm função alguma nem possam representar uma conquista em determinadas situações. É importante assinalar: existem casos em que os remédios são benéficos e podem ajudar a pessoa a sair de um estado de paralisia. E há bons profissionais que são parcimoniosos e responsáveis no seu uso, em geral por tempo determinado e com rigoroso acompanhamento, para que os efeitos colaterais das drogas não se tornem mais nocivos do que o problema que motivou o seu uso. Infelizmente, a realidade nos mostra que esta não tem sido a regra.

Vivemos hoje uma patologização da vida humana e um uso indiscriminado, abusivo e cada vez mais precoce de psicofármacos. A importância deste livro é nos ajudar a compreender o que isso diz sobre a forma como estamos vivendo as nossas vidas, sobre a qualidade do nosso desejo e sobre a lógica socioeconômica que tem movido nosso mundo. Para isso, de nada valeria trocar um dogma por outro. E o livro tem o mérito de não fazê-lo.

Se muitas vezes a ciência é colocada no lugar de divindade e damos aos médicos o poder de determinar como vamos viver – e como vamos morrer –, é porque nós permitimos que isso aconteça. Porque é mais fácil transferir a um outro a responsabilidade por escolhas que deveriam ser nossas. Ainda que seja difícil escapar das engrenagens do mundo, especialmente quando elas enriquecem as grandes corporações, em alguma medida é justo pensar que temos, se não liberdade, pelo menos uma paleta de alternativas. Com todos os riscos que implica escolher contra a lógica dominante.

Por exemplo. Quando os pais levam uma criança que não está dando as respostas “adequadas”, seja em casa ou na escola, a um psiquiatra ou a um pediatra ou a um neurologista ou a qualquer outra especialidade e saem de lá com um diagnóstico e uma receita de psicofármaco, não me parece que estão sendo enganados. Acredito que a ética do médico pode ser questionada. Mas acredito também que os pais, assim como cada um de nós, procuram – e encontram – o profissional que vai dizer aquilo que gostariam de ouvir.


Hoje parece mais fácil para os pais lidar com um diagnóstico de transtorno psiquiátrico e tentar calar seus filhos com medicamentos do que empreender uma travessia que seguramente será mais espinhosa, exigirá tempo e dedicação maiores e poderá levar a respostas impossíveis de prever – quando não a novas perguntas. Da forma como hoje é colocado, o “transtorno” mental aparece como algo que está convenientemente fora, não tem nada a ver nem com o paciente, nem com o funcionamento da família. Sem contar que parte dos pais adora delegar a difícil tarefa de serem pais – e parte dos médicos adora assumir a prazerosa tarefa de ser Deus.

No capítulo intitulado “Gotinhas e comprimidos para crianças sem história. Uma psicopatologia pós-moderna para a infância”, Alfredo Jerusalinsky afirma: “Nos últimos trinta anos, tem havido um deslocamento das categorias nosográficas (de descrição das doenças) para o terreno dos dados. Não se questiona o que quer dizer este ponto, esta palavra ou este gesto fora do lugar. (...) Na trajetória que estamos descrevendo, foi se apagando esse esforço por ver e escutar um sujeito, com todas as dificuldades que ele tivesse, no que tivesse para dizer, e foi-se substituindo o dado ordenado segundo uma nosografia (descrição das doenças) que apaga o sujeito. (...) É assim que os problemas deixam de ser problemas para serem transtorno. É uma transformação epistemológica importante, e não uma mera transformação terminológica. Um problema é algo para ser decifrado, interpretado, resolvido; um transtorno é algo a ser eliminado, suprimido porque molesta. Os nomes das categorias não são inocentes”.

E, mais adiante: “De nossa parte, continuamos sustentando uma psicopatologia interpretativa, o que quer dizer não nosográfica, porque não depende de dados, não depende de sintomas, mas de deciframento. (...) Colocam na cabeça dos pais que eles não têm nada para ver nem entender e, então, eles se comportam como se não tivessem nada para ver nem entender; consequentemente a criança fica condenada aos automatismos mentais. Mas, claro, para eles só existem os automatismos mentais, então o que é preciso é trocá-los por outros”.

Quando as crianças apresentam um comportamento não esperado (esperado por quem e para quê?), a resposta predominante de pais, médicos e professores têm sido não escutar, mas transformar expressões em transtornos porque o que a criança diz, por palavras, gestos ou ações, pode transtornar os pais. E por isso precisa ser calado o mais cedo e o mais rápido possível. Em nome desta lógica, esquece-se de que somos seres dotados de inteligência e são poucos os que se questionam: se nunca houve tantos diagnósticos psíquicos (e, portanto, tantas patologias), se nunca existiram tantos medicamentos disponíveis para tratar essas doenças ou distúrbios, por que o número de casos não para de crescer e estaríamos vivendo verdadeiras epidemias de doenças mentais, transtornos de comportamento ou como queiram chamar essas síndromes que têm se multiplicado como coelhos? Não seria legítimo questionar: então, os remédios não curam?

Se aceitarmos como verdade única que o problema se resume a uma disfunção química no nosso cérebro, alheia ao viver, algo da ordem dos mecanismos fisiológicos, como o desarranjo de um sistema robótico, não bastaria “corrigir” com drogas para ser “curado”? Pelas estatísticas, tão valorizadas e difundidas pela própria indústria, sabemos que não é isso o que está acontecendo. O número de “depressivos”, “bipolares” e doentes do “pânico”, no mundo dos adultos, assim como o número de crianças com “transtorno de hiperatividade e déficit de atenção” e até mesmo com “autismo” não para de crescer. Se os remédios são tão eficazes e os diagnósticos tão fáceis de fazer como aqueles testes que a imprensa costuma publicar, do tipo “descubra se você é depressivo”, os doentes não deveriam diminuir em vez de aumentar? Afinal, sempre que a ciência descobriu a cura ou uma vacina para as doenças, iniciava-se um processo de redução no número de casos até a total erradicação.

Sobre este aspecto, os organizadores levantam uma questão interessante na apresentação da obra: “A ligeireza (e imprecisão) com que as pessoas são transformadas em anormais é diretamente proporcional à velocidade com que a psicofarmacologia e a psiquiatria contemporânea expandiram seu mercado. Não deixa de ser surpreendente que o que foi apresentado como avanço na capacidade de curar tenha levado a ampliar em uma progressão geométrica a quantidade de ‘doentes mentais’”.

Para complementar essa ideia, vale a pena ler a ótima entrevista feita pela jornalista Cláudia Collucci na Folha de S. Paulo de 18 de outubro. Sob o sugestivo título “Estamos dando veneno para as crianças”, Marcia Angell, professora titular do departamento de Medicina Social da Escola Médica de Harvard, critica a indústria farmacêutica por estimular o uso de medicamentos psiquiátricos em pacientes infantis. E também em adultos. Angell diz: “As pessoas creem que as drogas sejam mágicas. Para todas as doenças, para toda infelicidade, existe uma droga. A pessoa vai ao médico e o médico diz: ‘Você precisa perder peso, fazer mais exercícios’. E a pessoa diz: ‘Eu prefiro o remédio’. E os médicos andam tão ocupados, as consultas são tão rápidas, que ele faz a prescrição. Os pacientes acham o médico sério, confiável, quando ele faz isso. Pacientes têm de ser educados para o fato de que não existem soluções mágicas para os seus problemas. Drogas têm efeitos colaterais que, muitas vezes, são piores do que o problema de base”.

O que vale a pena perceber é que ninguém é normal, mesmo. Basicamente porque não há como saber o que seja isso. O que não é razão para sermos todos tratados como portadores de algum transtorno mental desde bebê. Como afirmam Alfredo Jerusalinsky e Silvia Fendrik: “A generalização e multiplicação dos signos psicopatológicos preparam o território para a expansão industrial na fabricação de psicofármacos, que passam a ser consumidos em massa. Nasce assim uma hipocondria dos estados de humor, dos afetos, das dúvidas, dos desejos, das tristezas. As variações mentais e as singularidades pessoais são comparadas com uma média estatística que cria uma medida comum inexistente na realidade. Esse ‘boneco padrão’ subjacente descreve uma ‘normalidade’ definida pela uniformidade. Comparados com ele, viramos todos ‘doentes mentais’”.

A tentativa de classificar toda singularidade como anormalidade pode se tornar uma grande comédia. Em 1992, o psicólogo clínico britânico Richard Bentall propôs em um artigo para o “Journal of Medical Ethics” o seguinte: classificar a felicidade como distúrbio psiquiátrico e incluí-la no manual dos transtornos mentais (DSM-IV). Richard escreveu com grande rigor acadêmico e citou 32 artigos de importantes revistas científicas britânicas. Passo a passo, ele prova que a felicidade é um estado estatisticamente anormal, acompanhado por sintomas como disfunção cognitiva e marcado por uma percepção distorcida da realidade.

Os pacientes afetados por esse distúrbio apresentam um quadro de euforia, sem contrapartida real, podendo resultar em desvantagem adaptativa. Sem contar que há uma relação significativa da felicidade com obesidade e ingestão de álcool. Richard propõe que os psiquiatras busquem tratamento para a felicidade e sugere até um nome para classificá-la como doença mental: “major affective, pleasant type”. A história é deliciosa porque Richard percebeu que, para evidenciar o absurdo que estava – e continua – sendo praticado, só mesmo assumindo o discurso psiquiátrico, mas pelo avesso. Se a tristeza é tratada como uma anomalia que pode e precisa ser curada, por que não a felicidade?

Ao olhar hoje para nós, com seus olhos artificiais, com o que um robô se depararia? Acho que uma das respostas pode ser encontrada em “Wall-e”, a bela animação da Pixar. Aliás, fica uma dica das mais agradáveis: pegue na locadora estes dois filmes sobre robôs, mas de épocas diferentes, “O Homem Bicentenário”, inspirado no texto de Isaac Asimov publicado na década de 70, e “Wall-e”, que recebeu o Oscar de melhor animação em 2009. “Wall-e” é um filme brilhante, “O Homem Bicentenário” deixa a desejar, mas juntos podem ser um ponto de partida interessante para pensar – sozinho, com os amigos ou com a família – sobre as mudanças ocorridas nas últimas décadas na forma de enxergar a nós mesmos.

“O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea” afirma que o ideal pós-moderno é o pensamento simplificado: memória reduzida + seleção de respostas corretas. Dizem Alfredo e Silvia: “Enquanto a cibernética eletrônica procura engenhosamente capacitar seus robôs para responder a questões cada vez mais aleatórias, e até para formular perguntas, nós humanos somos levados a uma ‘padronização’ do controle da ‘mente’. Amparados em padrões diagnósticos cada vez mais amplos – depressão, TOC, Asperger etc –, incluem-se os mais heterogêneos conjuntos de sintomas justificando deste modo a utilização dos mesmos psicofármacos. (...) Em um mundo em que o sujeito se desvanece ao redor da promessa de ter respostas para tudo, curiosamente surgem e proliferam as ‘patologias’ (...). O modelo atualmente proposto substitui o saber pela informação, a falta pela completude, a busca pela resposta ‘já’, a singularidade da diferença pela repetição do idêntico, o enigma do passado e do futuro pela pretensa certeza garantida do presente. O ideal seria que adaptássemos nossa experiência àquilo que, com toda a propriedade, poderia se chamar: Homo Automaticus?”.

Um dos traços marcantes da modernidade é a descoberta de que nossa consciência é apenas uma pequena parte do que somos. Há um vasto mundo inconsciente ou pré-consciente que nos constitui. Assim, não deixa de ser curioso, ainda que bastante lógico, que a partir da descoberta transformadora de que a consciência nem nos governa nem é nosso “eu” total, de repente desejamos nos robotizar para escapar da aventura ao mesmo tempo extraordinária e assustadora que é criar uma vida. Será que o melhor acordo que podemos fazer com nós mesmos é engolir pilulinhas na tentativa de manter um ilusório controle sobre nossa mente e sobre o outro, quando se trata de nossos filhos? Pílula para comer ou para não comer, pílula para dormir ou para ficar acordado, pílula para ter desejo sexual ou para diminuir o desejo sexual, pílula para se acalmar ou para estimular... Como se a condição humana, com todas as suas ambiguidades, pudesse ser reduzida ao mero ajuste de um corpo-máquina.

O crescimento dos distúrbios mentais na mesma proporção das supostas pílulas da felicidade e de outros “ajustadores” da mente mostra que há algo que não fecha nessa conta. Enquanto puder, a indústria farmacêutica vai continuar ganhando com a transformação de qualquer sofrimento em patologia e com a consequente medicalização da vida. E, quando (e se) algo mudar, vão ganhar com outra coisa. Mas nós, nós e nossos filhos, só temos uma vida para viver da forma mais ampla e rica possível. Convém não perdê-la na tentativa de anular a singularidade que nos pertence.

Como dizem Alfredo Jerusalinsky e Silvia Fendrik, os organizadores de “O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea”: “Os robôs não precisam se preocupar, já que hoje em dia parecem ser eles os que encarnam o ideal: sem desejos, sem envelhecimento, sem falhas, com automatismos garantidos para cada situação específica, sem vacilação, tudo positivado em um pensamento ‘positivo’. No entanto, devemos sublinhar que, enquanto aqueles robôs dos anos 1930 representavam em sua rebelião os ideais de um modernismo romântico, os atuais ‘transtornos’, sob suas formas toxicomaníacas, bulímicas, anoréxicas, de padrões sociais de sucesso ou de quimiopsiquiatria, representam a obediência recoberta por um falso manto de liberdade”.

Por mais que tudo nos empurre para a patologização e a medicalização da vida na busca de uma normalidade inexistente, acredito que há algo do humano que resiste, que não é calado e que grita, ainda que dopado. É por isso que a conta não fecha. Porque, por mais que se divulgue a crença – e é neste momento que a ciência se coloca no lugar da religião – de que é possível controlar o sofrimento e garantir a felicidade, a humanidade que mora em nós desmascara essa ilusão dia após dia. E por isso é preciso encontrar uma nova panaceia para dar conta de cada novo “transtorno”.

Se a dor é inerente à vida, ela necessariamente não é algo ruim, mas algo que nos impele a buscar um jeito de viver que faça mais sentido para nós. Se a confusão pode ser infernal no cotidiano, com todas as dúvidas que ela traz, não há como achar algo ou a si mesmo sem ela, para em seguida nos perdermos de novo, porque é assim que alcançamos outros mundos também dentro de nós. A angústia não deve ser silenciada, mas ouvida, porque está nos dizendo algo que nos diz respeito. E, se você for pai ou mãe, é sua a responsabilidade de lidar com as questões trazidas por seus filhos, sejam em forma de palavras, de gestos ou de comportamento. É sua – e não dos médicos – desde que você escolheu ser pai ou mãe – e até que suas crianças progressivamente assumam a responsabilidade pelos rumos da própria vida. E, acredite, a melhor forma de lidar ainda começa por escutar. Escutar de verdade.

É na incompletude, que não se fecha com nenhuma pílula, que talvez possamos, individual e coletivamente, empreender uma busca sem nenhuma garantia, como são todas as buscas, que nos leve a criar uma vida que ainda possa fazer um robô aspirar a uma existência humana.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O câncer pode ser uma dádiva?

Primeiro depoimento de Gianecchini sugere uma reflexão sobre o papel da religiosidade no tratamento da doença.

Por: Cristiane Segatto - Colunista da Revista Época

Se você ainda não assistiu ao depoimento do ator Reynaldo Gianecchini sobre o câncer que ele enfrenta, vídeo divulgado em primeira mão por ÉPOCA, recomendo que faça isso agora. Antes mesmo de terminar de ler esse texto.

As palavras de Gianecchini são tocantes. O ator gravou esse vídeo no dia 6 de outubro para uma associação de pacientes, a Abrale (Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia). O valor do vídeo é a sinceridade que ele transmite.

Sentado diante da câmera, sem nenhuma super produção, Gianecchini abre o coração. E, por isso mesmo, toca o coração de quem o escuta. São cinco minutos que fazem a gente ganhar o dia.

Em um dos trechos, ele diz: “Acredito que (o câncer) pode ser uma dádiva. Eu e minha família, ao longo do processo, fomos nos iluminando. Buscando uma força que a gente não sabia que tinha. Além disso, recebi do público um amor tão tocante.”

Não é a primeira nem a segunda vez que ouço um paciente de câncer dizer que a doença pode ser uma dádiva. É uma afirmação que sempre me causa estranhamento. Admiro os sentimentos e a fé de quem pensa assim. No entanto, cá com meus botões, penso que se a doença é um presente, prefiro ficar sem essa dádiva.

Não há nada de sobrenatural na gênese do câncer. Ele é decorrente do crescimento descontrolado de uma única célula. A divisão celular permite que nós possamos crescer, nos adaptar, recuperar os tecidos lesados, viver.

O mesmo processo, quando escapa ao controle, permite que as células de câncer cresçam, floresçam, se adaptem. Permite que o câncer viva ao custo de nossa vida. O oncologista Siddhartha Mukherjee resume isso muito bem no livro O imperador de todos os males: uma biografia do câncer (Companhia das Letras): “Se buscamos a imortalidade, a célula de câncer também busca”.

“A célula de câncer é a mais perfeita versão de nós mesmos”, diz o americano Harold Varmus. A descoberta de que o câncer é causado por mutações genéticas ocorridas nas células normais rendeu a ele e a J. Michael Bishop o Nobel de Medicina em 1989.

Para vencer o câncer, portanto, é preciso encontrar formas de prevenir essas mutações. Por que elas ocorrem? Em primeiro lugar, estatisticamente, por causa do cigarro. Ele causa as alterações genéticas responsáveis por 35% de todos os casos de câncer. Outros 15% são provocados pelo álcool. Depois vêm os vírus, a poluição e outros fatores. Apenas 5% são provocados por alterações genéticas hereditárias.

Como se vê, todos estamos sujeitos ao câncer. Acontece com os velhos, com os moços, com os bebês. Com os ricos e com os pobres. Com os altos e magros e com os baixinhos e gordinhos. Com os sedentários e também com os atletas (ainda que em menor proporção). Com os feios e com os bonitos.

É um processo puramente biológico. Pode acontecer comigo e com você, como aconteceu com Giane. Ele menciona, no vídeo, que jamais imaginou que pudesse passar por isso porque é uma pessoa alegre, que não guarda mágoas.


Pois é, Giane, o aparecimento do câncer também não é determinado pelo psiquismo. Não da forma como se acreditava no passado. É doença que afeta os magoados, os pérfidos, os maus, os bons, os otimistas, os cativantes.


Estamos todos no mesmo barco. Quem ainda não teve um caso de câncer na família provavelmente terá um dia. Por isso é útil saber o que pode ajudar a amenizar o sofrimento do paciente e das pessoas queridas que, de certa maneira, adoecem junto com ele.


A regra número 1 é que não existe regra. A religiosidade de Gianecchini parece representar um porto seguro para ele. Mas a fé só faz sentido para quem tem. Não pode ser imposta. O doente que acredita em Deus ou em qualquer outra força superior merece tanto respeito quanto os pacientes que não acreditam.


Não é raro ver um doente receber uma visita no hospital e ser obrigado a ouvir do visitante que uma outra pessoa foi curada de câncer porque Deus a achou merecedora. É triste, para quem ouve, testemunhar a essa divisão drástica do mundo: de um lado, os merecedores. Do outro, os que não merecem. Desse lado, os que têm valor. Do outro, os que não valem nada.


Isso não pode ajudar ninguém. O que ajuda é o respeito. Por tudo aquilo que a pessoa é e por tudo o que ela pensa e sente.


A religiosidade de Giane faz todo sentido para ele. A beleza da mensagem do ator é a positividade da essência. Uma beleza que transcende o fato de que ele tem fé religiosa. É o tipo de beleza que serve para quem acredita no sobrenatural e para quem não acredita.


“Recebi gente de todas as religiões: do rabino ao evangélico, ao espírita”, diz ele. “Deixei que todos rezassem por mim”, afirma.


E completa: “Cheguei à conclusão de que religião é isso. É essa força que resvala no amor. De compartilhar, buscar a caridade. Isso é a busca da cura. Acho que cada um tem seu caminho”.


Por tudo isso, muitos médicos já se convenceram (graças a pesquisas científicas sérias) de que é fundamental conhecer a história espiritual do paciente que vão tratar. Existem questionários bem estruturados para que o trabalho seja feito adequadamente. O médico Franklin Santana Santos trata desse tema, entre outros de extrema relevância, no livro Cuidados Paliativos: Discutindo a Vida, a Morte e o Morrer (Editora Atheneu).


O médico responsável pelo paciente que enfrenta uma doença grave deve perguntar sobre as crenças que ele tem. O objetivo é entendê-las e perceber de que forma elas podem ajudar o doente na recuperação. O médico não pode, no entanto, fazer julgamentos ou tentar modificar a existência ou a falta delas.


Essa informação deve ser documentada no prontuário do paciente para que outros profissionais tenham acesso a ela. Se necessidades espirituais forem identificadas, o líder religioso precisa ser avisado. Se nenhuma necessidade espiritual for identificada, o paciente precisa de algo muito simples: respeito.


Com seu depoimento do fundo do coração, Giane deu uma bela lição. Aos que têm fé e aos que não têm.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Vamos desejar os melhores votos para a Tunísia, até por nós

Por: Caio Blinder - Colunista da Veja

Para os histéricos com um discurso erva daninha sobre esta “primavera árabe” e para os eternamente floridos, aqui vai uma mensagem de alguém que devemos cultivar. O nome dele é Salman Rushdie, o escritor que sabe dos perigos do fundamentalismo islâmico. Afinal, ele foi alvo de uma fatwa, mais especificamente, de uma sentença de execução ordenada por aquela flor de pessoa que era o aiatolá Khomeini. Rushdie está vivo e é vivo para falar coisa com coisa sobre as eleições deste último domingo na Tunisia para uma assembléia constituinte.

A mensagem via Twitter, que eu vou traduzir de forma liberal, é a seguinte: dia de eleição, primeira eleição livre depois da “primavera árabe”. Os islamistas vão ganhar? Se isto acontecer, eles serão moderados como prometeram? Grande momento.

Aí, perguntado por um seguidor no Twitter se ele continuaria a dar pancada no Nahda se o partido islâmico “moderado”, como se projeta, tiver uma sólida vitória, Rushdie responde: depende se o partido se tornar opressor. Muitos regimes opressores foram levados ao poder pelo voto. Vamos ver e esperar.

Eu vou esperar com Rushdie, naquela mescla de esperança e apreensão. Ambiguidade é o sentimento adequado quando se trata destes partidos “moderados” islâmicos, com mensagens dúbias, com um discurso para a imprensa internacional e outro para a base, que também esperou um tempão e agora quer a sua vez. Já escrevi um texto na sexta-feira sobre a Tunísia. O pequeno país na África do Norte merece um segundo na sequência, enquanto aguardamos os resultados desta eleição histórica, que podem sair nesta segunda-feira ou na terça.

A promessa de Rachid Ghannouchi, o líder do Nahda, é uma composição com outros partidos, inclusive seculares, como única forma de governar o país. Este veterano político que passou mais de 20 anos no exílio (não em um paraíso islâmico, mas na Grã-Bretanha) disse aos jornalistas que sua meta “é estabelecer fundações de um sistema democrático, sólido, sustentável e irreversível na Tunísia”. Alguém vota contra? Vamos torcer contra o sucesso do casamento entre democracia e islamismo para provar que a região é um caso perdido? Eu não, embora não tenha gostado do discurso da “libertação” (que não é sinônimo de democracia) feito em Bengazi no domingo pelo líder do Conselho Nacional de Transição, Mustafa Abdul Jalil, sinalizando que a lei islâmica será a base na Líbia pós-Kadafi.

Apenas um pouquinho de contextualização: políticos veteranos como Ghannouchi, assim como os companheiros da Irmandade Muçulmana no Egito, onde haverá eleições no final de novembro, sabem que precisam ir devagar com o andor. Ghannouchi já perdeu quando os islamistas se saíram bem em um ensaio de eleição na Tunísia em 1989. Acabou no exílio. Na mesma época, o Exército na Argélia resolveu intervir quando um partido islâmico venceu eleições. O resultado foi uma década de sangrenta guerra civil. Para Ghannouchi, interessa ganhar, mas não ganhar de muito. E ele vai ganhar com o appeal da mensagem que mistura o caminho do islamismo com a promessa de justiça social. Mais do que promessa, partidos como Nahda são craques no assistencialismo e na redenção dos pobres.

E partidos como o dele ganham numa fase inicial. Estão mais organizados e aprenderam a sobreviver na luta contra a ditadura. Quem sabe, inclusive a ambiguidade seja genuina. Políticos como Ghannouchi podem realmente estar divididos entre a necessidade de assegurar o respeito às liberdades civis, como deseja o mundo civilizado, e a promessa de uma lei islâmica mais rigorosa, como deseja a base. Ademais, é preciso distinguir quem é quem no espectro político. Na “primavera árabe”, Nahda e Irmandade Muçulmana emergem no centro, entre os ultraconservadores salafistas (que pregam uma interpretação literal do Corão) e os liberais. Por contingência e posição no espectro, alguém como Ghannouchi pode acabar atuando de forma pragmática. Como disse o mestre Rushdie, é preciso ver e esperar.

De qualquer forma, Ghannouchi e os “moderados” islâmicos não têm como monopolizar na assembléia constituinte. Esta é uma realidade política da Tunísia e será assim no Egito, um país obviamente muito mais importante. A realidade é uma oportunidade para grupos não islâmicos montarem uma base mais sólida de apoio, mesmo que numa fase inicial o desempenho eleitoral seja pífio.

Muitos vão dizer que está tudo escrito, não precisamos esperar, como o escritor Rushdie. O que querem afinal? Voltar na história? Reler o livro de trás para frente? Isto outros já fazem.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Um toque garante sua vida

Por: Terezinha Prataviera

Terezinha é vereadora na Cidade de Hortolândia (interior de São Paulo) e está em seu primeiro mandato, um de seus carros chefes de governo é a luta em defesa do direito e da saúde da Mulher.

Email: vereadora.terezinha@yahoo.com.br

Abordarei um assunto que, com certeza, é do interesse de todas nós mulheres “o câncer de mama” (chamado popularmente de câncer do seio) é o tipo de câncer mais frequente na mulher brasileira, superando o do colo do útero. Apesar de ser um tumor maligno, é uma doença curável se descoberta a tempo, o que nem sempre é possível, pois o medo do diagnóstico é muito grande, levando algumas mulheres a perder um tempo precioso. Se a detecção for precoce, em que o câncer se resume a um nódulo único na mama, a taxa de cura chega a 95%. E nesse estágio, provavelmente nem haverá necessidade de extrair toda a mama.

Sabe-se hoje que os hábitos da vida moderna (má alimentação, estresse, sedentarismo, tabagismo) e a valorização da carreira profissional, que leva a mulher a adiar ou até a abrir mão da maternidade, contribuem para o aumento da incidência da doença.

Segundo dados do Instituto Nacional de Câncer (INCA), o câncer de mama é o segundo tipo mais comum da doença no mundo e o mais frequente entre as mulheres, respondendo por 22% dos casos. O número anual de ocorrências no país é estimado em cerca de 49 mil e, embora menos comum, homens também podem ser atingidos.

Ainda segundo o INCA, as taxas de mortalidade por câncer de mama no Brasil continuam elevadas. Em 2008, ano do último levantamento feito no país, foram registradas 11.860 mortes em decorrência da doença. Das vítimas, 11.735 eram mulheres e 125 homens. Na população mundial, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a sobrevida média após cinco anos é de 61%. Desta forma é lançado nesta terça-feira nacionalmente o “ Outubro Rosa”, uma campanha que tem como objetivo alertar sobre a importância de prevenção do câncer de mama.

Cada uma de nós tem um grande papel a desempenhar e, para isso precisamos estar com muita saúde e disposição. Sendo assim, que tal “Um Toque”? Ou seja, dedicarmos um tempinho para um auto-exame de mama.

Para realizar o auto-exame é necessário que uma semana após a menstruação, deitada, toque em cada uma das mamas como se estivesse tocando as teclas de um piano, de fora para dentro, de todos os lados. Se encontrar algum nódulo, procure um ginecologista o mais rápido possível. A presença de um nódulo não significa que você esteja com câncer, mas vale a pena investigar melhor para afastar essa hipótese. E para os homens que estão lendo este artigo,vocês também devem se prevenir e podem ajudar no diagnóstico precoce do câncer de mama de suas companheiras, já que muitas pacientes foram “alertadas” pelo marido!
Não esqueça: Anote em sua agenda, ou em qualquer outro lugar: Uma semana depois da menstruação, o toque do auto-exame de mama garante sua vida!

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

As vitórias contra o câncer infantil

Para melhorar a saúde, não basta reclamar do governo. O exemplo da ONG que cura 70% das crianças com câncer que batem à sua porta.

Por: Cristiane Segatto

A presidente Dilma Rouseff afirmou nesta semana que a saúde enfrenta um sério problema de gestão. Você já ouviu isso antes, não é? De outros governantes, de gente de qualquer partido, de candidatos e de eleitos. A história é sempre a mesma: antes da eleição, reina o discurso de salvador da pátria. Depois da eleição vem a conversa realista: “Vejam bem, a saúde exige um choque de gestão, precisamos criar um novo imposto para financiá-la, a coisa é complicada, estamos avançando etc”.

Enquanto isso, a saúde continua sendo a maior preocupação dos brasileiros. Esse foi o espírito captado por uma pesquisa encomendada ao Instituto Ibope pelo Movimento Todos pela Educação alguns meses antes da eleição de Dilma. Para 63% dos entrevistados, a saúde deveria ser a prioridade número 1 do próximo presidente.

Deveria ser, mas não será. Por várias razões e interesses. Segundo o Banco Mundial, o Brasil gasta em saúde cerca de 8% do PIB. A Argentina gasta 10%. O Chile (6,2%) e o México (5,9%) gastam menos, mas têm indicadores de saúde melhores que o Brasil. Gastam menos dinheiro, mas gastam melhor. São bons de gestão.

É preciso exigir que o governo gaste mais e melhor em saúde. Ao mesmo tempo, é preciso entender que essa tarefa não é exclusiva do governo. Há muita coisa que a sociedade organizada pode fazer. Não basta só reclamar. É preciso agir como tantos espíritos inquietos que conseguem melhorar a qualidade de vida de comunidades inteiras e fazer história. O segredo deles é o inconformismo de resultados.

É o caso, por exemplo, do oncologista Sérgio Petrilli, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Em 1988, ele visitou nos Estados Unidos o Hospital St. Judes, na cidade de Memphis. Ficou pensando por que razões aquele modelo não poderia dar certo também no Brasil. Descobriu que poderia e que sonhar – com os pés no chão – não faz mal à ninguém.

Foi assim que surgiu o GRAACC, o Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer, a ONG criada por ele em 1991. Em 20 anos, a experiência se provou eficaz. É um caso de sucesso baseado em três pilares: boa gestão, excelência média e científica e voluntariado organizado. Poderia ser reproduzido em qualquer lugar do Brasil. Basta querer.

“Não podemos aceitar que as crianças morram de câncer só porque são brasileiras”, diz Petrilli. Em vez de só reclamar do governo, ele teve a iniciativa de unir a universidade, os empresários e os voluntários na tarefa de preservar a vida.

Nas últimas décadas, o mundo conquistou muitas vitórias no combate ao câncer infantil. Em 1970, cerca de 75% das crianças com leucemia morriam nos Estados Unidos. O insucesso era a regra mesmo entre as famílias com condições financeiras de buscar o melhor tratamento possível. Hoje, 73% sobrevivem.

O câncer, a principal causa de morte por doença na população entre 5 e 18 anos, é um evento raro. Corresponde a menos de 3% de todos os casos da doença registrados no Brasil. A cada ano, surgem cerca de 10 mil casos novos.

É um câncer cheio de peculiaridades. Sob a lente do microscópio, os tumores infantis têm a aparência de tecidos fetais. Um tumor de rim, por exemplo, é composto de células embrionárias de rim. Antes que elas tivessem tido a chance de se desenvolver e se transformar numa célula renal com uma função específica, viraram tumor.
  

Isso explica por que bebês e crianças tão pequenas podem ter câncer antes que o estilo de vida inadequado tenha tido tempo de atuar sobre eles e desencadear a doença. A hipótese é que o desarranjo celular que leva ao câncer tenha sido provocado por substâncias químicas com as quais a mãe teve contato durante a gravidez.

Várias linhas de pesquisa buscam revelar quais são essas substâncias. Há muitos suspeitos – entre eles até as pastilhas usadas em repelentes elétricos de mosquito – mas nenhuma condenação. Seja qual for a causa da mutação que origina o tumor, ele vai crescendo silenciosamente durante a gestação e os primeiros anos de vida, até surgirem os sintomas.

A compreensão de que os tumores infantis são muito diferentes dos adultos contribuiu para as vitórias recentes contra a doença. Os anos 90 trouxeram descobertas genéticas que foram rapidamente incorporadas ao dia-a-dia dos consultórios.

No Brasil nem sempre é assim. Falta diagnóstico precoce e tratamento adequado. É aí que a criança sofre o ônus de ser brasileira. É contra essa regra que Petrilli decidiu se rebelar. No GRAACC, cerca de 70% dos pacientes são curados.

Os índices de cura poderiam ser ainda mais elevados se as crianças chegassem em fases mais precoces da doença. “Cerca de 30% dos pacientes com tumores ósseos chegam com metástase nos pulmões. Na Alemanha, esse índice é de 10%”, diz Petrilli.

Isso é sinal de que falta acesso ao sistema de saúde e de que falta informação aos médicos que prestam o primeiro atendimento. Poucos desconfiam de câncer. Para conhecer os principais sinais, acesse o site do GRAACC. https://www.graacc.org.br/o-cancer-infantil/sinais-e-sintomas.aspx

No ano passado, 2,5 mil crianças e adolescentes foram atendidos na instituição. Cerca de 90% eram pacientes do SUS. Felizmente, o GRAACC não pára de crescer. A casinha acanhada de 1991 se transformou, em 1998, num hospital completo (o Instituto de Oncologia Pediátrica).

Em meados de 2012, novas instalações estarão concluídas num terreno doado pela prefeitura de São Paulo. O hospital ganhará mais 4,2 mil m². Além do atendimento que já é feito hoje, a instituição contará com um aparelho de radioterapia dos mais modernos. Os planos de expansão prevêem que até 2015 o GRAACC ocupe 32 mil m².“Seremos um dos melhores centros de alta complexidade na América Latina”, diz Petrilli.

Como conseguiram? O GRAACC tem uma enorme área de captação de recursos. Várias empresas doam à instituição parte do Imposto de Renda devido. Inúmeras campanhas criativas fazem crescer as doações da sociedade. A parceria com o Mc Donald’s é só uma delas. O evento Mc Dia Feliz rendeu em 1993 o equivalente a R$ 100 mil reais. Em 2011, foram R$ 4,2 milhões.

As decisões na instuição são tomadas por um colegiado. Participam os empresários responsáveis pela gestão, os médicos, os voluntários. “Médicos são coorporativistas e empresários são mandões”, diz Petrilli. “Fui aprender a fazer planejamento estratégico, entender o que é core business e outras coisas”. Por outro lado, os empresários também aprenderam quais são as necessidades dos médicos, dos cientistas e dos voluntários. É uma aliança que deu certo.

“Nosso grande desafio é tratar todo paciente com o máximo de qualidade. Tratá-lo como se fosse um paciente particular. A questão aqui é o resgate da cidadania’, diz Petrilli.

As famílias atendidas no GRAACC reconhecem isso. A inspetora de qualidade Rozeli Aparecida Muniz sai de Carapicuíba, na Grande São Paulo, todos os dias às seis da manhã. Depois de enfrentar uma hora e meia de congestionamento, finalmente chega à instituição com a filha Ana Carolina.

A menina de 8 anos sofre de leucemia. Antes de chegar ao GRAACC, a família passou pelo roteiro clássico de desatenção à saúde tão comum no Brasil: diagnósticos errados, falta de acesso a exames e internação. Agora isso é passado. “Para mim é Deus no céu e o GRAACC na Terra”, diz Rozeli. “A gente não se sente no hospital. É um lugar que nos dá força”.

Ana Carolina adormece enquanto recebe a medicação na Quimioteca, um espaço colorido, cheio de livros e brinquedos, cuja intenção é reduzir o impacto do tratamento. Outras crianças brincam ou conversam.

Pela ótica de quem conhece a realidade da saúde pública brasileira, os pacientes do GRAACC parecem privilegiados. Até quando vamos aceitar que o tratamento correto, eficaz, gentil e respeitoso seja um direito de poucos?