A crise política instalada no Paraguai depois de o país protagonizar um processo de 36 horas para destituir seu presidente, Fernando Lugo, serve para explicitar alguns defeitos e idiossincrasias da política externa brasileira.
Logo depois que Lugo foi deposto num julgamento político e sumário, um ministro importante do governo Dilma Rousseff comentou:
“Você viu o número de manifestantes em frente ao Congresso deles? Só umas 3.000 pessoas. Tinha de ter umas 30 mil… Ou seja, o Lugo não está com tanto apoio assim. Vamos ter de esperar para saber como reagir”.
O que essa declaração significa? Duas coisas:
1) indefinição de valores: o governo da presidente Dilma Rousseff está de olho na reação da população do Paraguai para depois calibrar a reação oficial do Brasil.
Ou seja, a interpretação sobre se há algo de errado do ponto de vista democrático depende muito de como a população do Paraguai vai reagir. E de como reagirão os principais países no cenário internacional. Até agora, EUA e Espanha bateram palmas para o Congresso do Paraguai. Já os vizinhos bolivarianos estrilaram.
A verdade é que começa a existir dúvida no núcleo central do governo Dilma sobre se o que se passou no Paraguai foi mesmo um golpe ou algo na linha chavista, “dentro da lei” (sic).
Este Blog não tem dúvida: o que se passou ali no Paraguai está longe de ser algo compatível com as boas normas e práticas democráticas –e aqui não existe nenhum juízo de valor, a favor ou contra Lugo.
Mas ilógico imaginar que a operação de retirada de trabalhadores sem-terra com mortes seja razão legítima para depor o presidente em 36 horas.
Parece claro que Lugo é incompetente, não tem apoio político-partidário e jogou o país numa profunda crise econômica. Muito bem. No ano que vem tem eleição e os paraguaios poderiam votar num candidato de oposição.
2) o medo ingênuo de ser imperialista: não é de hoje (vem desde sempre) um temor pueril de que cole ainda mais no Brasil uma imagem já renitente no Cone Sul: os brasileiros são os imperialistas do subcontinente latino-americano.
Ontem (22.jun.2012), após a queda de Lugo, uma observação palaciana foi emblemática: “Não podemos ser imperialistas. Brasília não é Washington”. É verdade.
Mas países de tradição católica e ibérica como o Brasil gostam mesmo de falar as coisas de maneira transversa, ou pela metade. “Passa lá em casa” é a frase síntese do brasileiro. Quem ouve isso sabe: o sentido é quase sempre o inverso –“não passe lá em casa”. É o “homem cordial” sobre o qual discorreu tão bem Sérgio Buarque de Holanda.
Ou seja, o governo brasileiro (de Dilma, Lula ou FHC, não importa), quer mandar na América Latina e na África. Mas quer continuar com a imagem de bonzinho na região, sem a pecha de imperialista.
Países anglo-saxões têm mais tradição de dizer o que pensam, para o bem e para o mal. Quando os EUA consideram que um país vive em democracia, fazem uma afirmação nesse sentido. E o mesmo vale para ditaduras ou democracias postiças.
O Brasil, não. Escuda-se sempre no (bom) princípio da autodeterminação dos povos e na política de não intervenção em assuntos internos de outras nações –embora isso nada tenha a ver com dizer o que se pensa.
O problema é que ambiguidade produz mais ambiguidade. Forma-se um círculo vicioso. No caso do Brasil, como justificar agora que houve um golpe constitucional-congressual no Paraguai se Brasília nada diz sobre a fragilidade da democracia em países como Venezuela, Equador, Bolívia e até Argentina?
Para não ser imperialista, o Brasil acaba não sendo nada. Fica com o pior dos mundos.
Até porque, na maioria dos vizinhos latino-americanos a imagem brasileira é péssima e igual há anos: o Brasil é na região o que os Estados Unidos são para o México e parte da América Central.
A anedota antiga de dois mexicanos sentados numa estrada na fronteira entre o seu país e os EUA logo poderá ser adaptada para Brasil e Paraguai.
É assim:
Mexicano 1: olhe, lá estão Califórnia, Novo México, Texas, Arizona…
Mexicano 2: sim, um dia tudo isso foi nosso, do México. Os gringos nos roubaram tudo.
Mexicano 1: sim, é verdade. E nos roubaram justamente a parte asfaltada.
A teoria do “dentro da lei”
A crise paraguaia remete é claro para o problema central nesses casos: Foi golpe? O Paraguai vive num regime que pode ser considerado uma democracia? A deposição de Lugo foi “dentro da lei”?
Para início de conversa, a escravidão no Brasil existiu, como se sabe, dentro da lei. Era legal ter escravos em casa.
Esse argumento da escravidão é um pouco extremo, mas nos obriga a um raciocínio mais sofisticado sobre o Paraguai. Deve-se pensar mais antes de afirmar de forma peremptória o mantra da vez: “o impeachment de Lugo foi dentro da lei”.
Esse mantra é atraente, pois não houve pessoas mortas nem presas.
O problema é que no século 21 não haverá mais (ou serão raríssimos) golpes de Estado no velho estilo das repúblicas das bananas.
Aqueles golpes com militares tradicionais, cheios de medalhas pregadas no peito e entrando no palácio presidencial para prender a todos só vai sobreviver em comédias sarcásticas no cinema, como no filme “O ditador”, de Sacha Baron Cohen (o Borat). Aqui, um trailer hilariante.
Os inimigos da democracia já assistiram a muitos filmes de Costa Gravas. Aprenderam como não se deve fazer. Agora, a “tendência” é fazer tudo “dentro da lei” (sic). Até os golpes de Estado ficaram politicamente corretos.
Foi o que se passou no Paraguai. Tudo “dentro da lei” (sic). Um processo que começou em terminou em apenas 36 horas.
A inépcia do Itamaraty
Outro aspecto relevante que emerge da atual crise paraguaia é a incapacidade operacional do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
Dilma Rousseff só soube do problema político no país vizinho quando a Câmara dos Deputados do Paraguai já havia votado e aprovado o impeachment de Fernando Lugo.
Como é possível o serviço diplomático do maior país latino-americano não suprir sua presidente de informações sobre um iminente golpe de Estado numa nação que faz fronteira com o Brasil?
Quando Dilma soube, a vaca já havia ido para o brejo. Foi próximo do patético a tentativa de enviar chanceleres de vários países para tentar reverter o processo. O Senado do Paraguai não teria mais como encontrar um argumento político para recuar. Os senadores seriam massacrados por estarem se curvando à uma pressão externa.
Há hipóteses para essa inoperância do Itamaraty.
Uma delas é um fato: os diplomatas brasileiros são vendidos por um preço acima do seu valor real. A lenda de que o Ministério das Relações Exteriores é uma reserva de valor e qualidade é só isso mesmo –uma lenda. Há, por óbvio, exceções. Mas são apenas exceções.
O segundo ponto a ser considerado é o modelo gerencial escolhido por Dilma Rousseff. A presidente tem poucos assessores com liberdade para lhe dizer coisas desagradáveis, para interrompê-la ou trazer notícias ruins.
Os diplomatas já tem um comportamento pusilânime por natureza. São treinados para agradar. Com uma presidente da República adepta de um estilo duro no dia a dia, os itamaratecas tendem a ser ainda mais tímidos do que já são.
Mas nada justifica a omissão no caso do Paraguai. Tivesse tomado conhecimento do assunto antes, um país como o Brasil poderia ter ajudado a mediar a crise e evitar a deposição do presidente do país vizinho –ajudado, é claro, dentro dos limites da legalidade e da diplomacia.
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