quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Moralistas de última Hora

Por: Wladimir Safatle 

A moralidade é uma virtude disputada. Mesmo aqueles que dela conhecem apenas o nome gostam de falar sobre virtudes morais como se fossem íntimos de longa data.
Em época eleitoral, por exemplo, somos obrigados a acompanhar o espetáculo lamentável de moralistas de última hora, que parecem acreditar no pendor infinito da população ao esquecimento e à indignação seletiva.

Melhor seria que eles se abstivessem de falar de moral antes de meditar profundamente a respeito da passagem do Evangelho que exorta a primeiro tirar a trave no seu próprio olho antes de retirar o cisco no olho do próximo.

Por exemplo, o Brasil vive um momento importante com o corajoso julgamento do chamado mensalão. Espera-se, com justiça, que daí nasça uma nova jurisprudência para crimes de corrupção eleitoral. Espera-se também que ninguém saia impune desse caso vergonhoso.
No entanto é tentar resvalar a moralidade à condição de discurso da aparência e da esperteza ver políticos como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e seu candidato à Prefeitura de São Paulo tentarem utilizar a justa indignação popular em benefício eleitoral próprio.

Caso eles realmente amem os usos das virtudes morais em política, melhor seria se começassem por fazer uma profunda autocrítica sobre o papel de seu partido na criação do próprio mensalão, da acusação de compra de voto na emenda da reeleição, assim como fornecer uma resposta que não fira a inteligência quando membros de seu partido -como Marconi Perillo, Yeda Crusius e Cássio Cunha Lima- aparecem envolvidos até a medula em casos de corrupção.

Seria bom também que eles explicassem por que apoiam incondicionalmente um prefeito que chegou a ter seus bens apreendidos pela Justiça no ano passado devido ao caráter da contratação da empresa Controlar, e por que a Justiça suíça e a francesa investigam propinas que a empresa Alstom teria pago a políticos do governo paulista em troca de contratos com a Eletropaulo.

Por fim, seria uma boa demonstração de respeito aos eleitores que o candidato Serra se defendesse, de preferência sem impropérios, a respeito das acusações sobre o processo de privatização de empresas federais no período FHC.

Sem isso, toda essa pantomima lembrará uma velha piada francesa sobre um sujeito que dizia a todos em sua pequena cidade ser amigo de Charles de Gaulle. Eis que um dia, De Gaulle aparece na cidade. Para não ser desmascarado, o sujeito resolve chegar perto do presidente e, com um tom de cumplicidade, perguntar: "E aí, Charles, o que há de novo?". "De novo", respondeu De Gaulle,"só mesmo essa intimidade".

sábado, 23 de junho de 2012

Dilma e o medo de ser “imperialista”

Fonte: Blog do  Fernando Rodrigues


A crise política instalada no Paraguai depois de o país protagonizar um processo de 36 horas para destituir seu presidente, Fernando Lugo, serve para explicitar alguns defeitos e idiossincrasias da política externa brasileira.

Logo depois que Lugo foi deposto num julgamento político e sumário, um ministro importante do governo Dilma Rousseff comentou:

“Você viu o número de manifestantes em frente ao Congresso deles? Só umas 3.000 pessoas. Tinha de ter umas 30 mil… Ou seja, o Lugo não está com tanto apoio assim. Vamos ter de esperar para saber como reagir”.

O que essa declaração significa? Duas coisas:

1) indefinição de valores: o governo da presidente Dilma Rousseff está de olho na reação da população do Paraguai para depois calibrar a reação oficial do Brasil.

Ou seja, a interpretação sobre se há algo de errado do ponto de vista democrático depende muito de como a população do Paraguai vai reagir. E de como reagirão os principais países no cenário internacional. Até agora, EUA e Espanha bateram palmas para o Congresso do Paraguai. Já os vizinhos bolivarianos estrilaram.

A verdade é que começa a existir dúvida no núcleo central do governo Dilma sobre se o que se passou no Paraguai foi mesmo um golpe ou algo na linha chavista, “dentro da lei” (sic).

Este Blog não tem dúvida: o que se passou ali no Paraguai está longe de ser algo compatível com as boas normas e práticas democráticas –e aqui não existe nenhum juízo de valor, a favor ou contra Lugo.

Mas ilógico imaginar que a operação de retirada de trabalhadores sem-terra com mortes seja razão legítima para depor o presidente em 36 horas.

Parece claro que Lugo é incompetente, não tem apoio político-partidário e jogou o país numa profunda crise econômica. Muito bem. No ano que vem tem eleição e os paraguaios poderiam votar num candidato de oposição.

2) o medo ingênuo de ser imperialista: não é de hoje (vem desde sempre) um temor pueril de que cole ainda mais no Brasil uma imagem já renitente no Cone Sul: os brasileiros são os imperialistas do subcontinente latino-americano.

Ontem (22.jun.2012), após a queda de Lugo, uma observação palaciana foi emblemática: “Não podemos ser imperialistas. Brasília não é Washington”. É verdade.

Mas países de tradição católica e ibérica como o Brasil gostam mesmo de falar as coisas de maneira transversa, ou pela metade. “Passa lá em casa” é a frase síntese do brasileiro. Quem ouve isso sabe: o sentido é quase sempre o inverso –“não passe lá em casa”. É o “homem cordial” sobre o qual discorreu tão bem Sérgio Buarque de Holanda.

Ou seja, o governo brasileiro (de Dilma, Lula ou FHC, não importa), quer mandar na América Latina e na África. Mas quer continuar com a imagem de bonzinho na região, sem a pecha de imperialista.

Países anglo-saxões têm mais tradição de dizer o que pensam, para o bem e para o mal. Quando os EUA consideram que um país vive em democracia, fazem uma afirmação nesse sentido. E o mesmo vale para ditaduras ou democracias postiças.

O Brasil, não. Escuda-se sempre no (bom) princípio da autodeterminação dos povos e na política de não intervenção em assuntos internos de outras nações –embora isso nada tenha a ver com dizer o que se pensa.

O problema é que ambiguidade produz mais ambiguidade. Forma-se um círculo vicioso. No caso do Brasil, como justificar agora que houve um golpe constitucional-congressual no Paraguai se Brasília nada diz sobre a fragilidade da democracia em países como Venezuela, Equador, Bolívia e até Argentina?

Para não ser imperialista, o Brasil acaba não sendo nada. Fica com o pior dos mundos.
Até porque, na maioria dos vizinhos latino-americanos a imagem brasileira é péssima e igual há anos: o Brasil é na região o que os Estados Unidos são para o México e parte da América Central.

A anedota antiga de dois mexicanos sentados numa estrada na fronteira entre o seu país e os EUA logo poderá ser adaptada para Brasil e Paraguai.

É assim:

Mexicano 1: olhe, lá estão Califórnia, Novo México, Texas, Arizona…

Mexicano 2: sim, um dia tudo isso foi nosso, do México. Os gringos nos roubaram tudo.
Mexicano 1: sim, é verdade. E nos roubaram justamente a parte asfaltada.



A teoria do “dentro da lei”


A crise paraguaia remete é claro para o problema central nesses casos: Foi golpe? O Paraguai vive num regime que pode ser considerado uma democracia? A deposição de Lugo foi “dentro da lei”?



Para início de conversa, a escravidão no Brasil existiu, como se sabe, dentro da lei. Era legal ter escravos em casa.

Esse argumento da escravidão é um pouco extremo, mas nos obriga a um raciocínio mais sofisticado sobre o Paraguai. Deve-se pensar mais antes de afirmar de forma peremptória o mantra da vez: “o impeachment de Lugo foi dentro da lei”.

Esse mantra é atraente, pois não houve pessoas mortas nem presas.

O problema é que no século 21 não haverá mais (ou serão raríssimos) golpes de Estado no velho estilo das repúblicas das bananas.

Aqueles golpes com militares tradicionais, cheios de medalhas pregadas no peito e entrando no palácio presidencial para prender a todos só vai sobreviver em comédias sarcásticas no cinema, como no filme “O ditador”, de Sacha Baron Cohen (o Borat). Aqui, um trailer hilariante.

Os inimigos da democracia já assistiram a muitos filmes de Costa Gravas. Aprenderam como não se deve fazer. Agora, a “tendência” é fazer tudo “dentro da lei” (sic). Até os golpes de Estado ficaram politicamente corretos.

Foi o que se passou no Paraguai. Tudo “dentro da lei” (sic). Um processo que começou em terminou em apenas 36 horas.

A inépcia do Itamaraty


Outro aspecto relevante que emerge da atual crise paraguaia é a incapacidade operacional do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.



Dilma Rousseff só soube do problema político no país vizinho quando a Câmara dos Deputados do Paraguai já havia votado e aprovado o impeachment de Fernando Lugo.
Como é possível o serviço diplomático do maior país latino-americano não suprir sua presidente de informações sobre um iminente golpe de Estado numa nação que faz fronteira com o Brasil?

Quando Dilma soube, a vaca já havia ido para o brejo. Foi próximo do patético a tentativa de enviar chanceleres de vários países para tentar reverter o processo. O Senado do Paraguai não teria mais como encontrar um argumento político para recuar. Os senadores seriam massacrados por estarem se curvando à uma pressão externa.

Há hipóteses para essa inoperância do Itamaraty.

Uma delas é um fato: os diplomatas brasileiros são vendidos por um preço acima do seu valor real. A lenda de que o Ministério das Relações Exteriores é uma reserva de valor e qualidade é só isso mesmo –uma lenda. Há, por óbvio, exceções. Mas são apenas exceções.

O segundo ponto a ser considerado é o modelo gerencial escolhido por Dilma Rousseff. A presidente tem poucos assessores com liberdade para lhe dizer coisas desagradáveis, para interrompê-la ou trazer notícias ruins.

Os diplomatas já tem um comportamento pusilânime por natureza. São treinados para agradar. Com uma presidente da República adepta de um estilo duro no dia a dia, os itamaratecas tendem a ser ainda mais tímidos do que já são.

Mas nada justifica a omissão no caso do Paraguai. Tivesse tomado conhecimento do assunto antes, um país como o Brasil poderia ter ajudado a mediar a crise e evitar a deposição do presidente do país vizinho –ajudado, é claro, dentro dos limites da legalidade e da diplomacia.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Há espaço para CQC e Pânico na Band?

Por Fernando Oliveira

A notícia de que o “Pânico na TV” deixou a Rede TV! e está prestes a fechar contrato com a Band pegou a todos de surpresa e tomou a internet de assalto. O programa deve estrear em março e dividirá o estúdio com o “Ganha Quem Fica”, game show que será comandado por Datena. Numa emissora que nos últimos anos conseguiu emplacar produtos inovadores e bem-sucedidos (cada um a sua maneira, ressalve-se) como “A Liga” e “Mulheres Ricas”, é compreensível que haja espaço para uma atração como a comandada por Emília Surita. A não ser por um porém: o canal já conta com o “CQC” em sua grade de programação, um formato que lembra o “Pânico” em alguns pontos. É inevitável, portanto, que surja um questionamento: afinal, há espaço para dois humorísticos na Band?

Tão logo foi lançado, o “CQC” despertou desconfiança de parte do público. Muitos acharam tratar-se de um clone do humorístico que conta com Sabrina Sato no elenco. Foi preciso tempo para mostrar que, embora, em alguns quadros repórteres das duas produções fizessem plantão em portas de festas com famosos, a atração da Band tinha também um cunho jornalístico e social com quadros como o “Proteste Já” e as entrevistas com políticos em Brasília. Ainda que houvesse aproximação entre algumas pautas, a concorrência entre as emissoras servia como justificativa.

Agora no mesmo canal, é natural que haja uma readequação entre o material que será exibido nos dois humorísticos. Mas nos últimos tempos isso já parecia acontecer de maneira espontânea. Enquanto o “CQC” se mantém, digamos, em cima do salto, o “Pânico” não tem medo da galhofa. Investe em mulheres seminuas no palco ou deslizando num escorregador segurando um ganso, transforma seus repórteres em personagens e mais importante: dá mais audiência. Enquanto o programa de Marcelo Tas costuma marcar cinco ou seis pontos em seus melhores dias, o de Emílio Surita bate na casa dos 10. O que faz a coluna trazer à tona mais um questionamento: como a Rede TV! deixou escapar sua atração de maior audiência? Um erro dos grandes

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A bilheteira mística

Por: Luis Antônio Giron

Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV

Maura tem 26 anos e gastou tempo demais pensando no que fazer da vida. Namorou e brigou. Queria sair da casa dos pais na Vila Clarice e não conseguiu. Começou muitos cursos e os trancou. Imaginou projetos que não foram adiante até que abandonou seus ideais na ilusão de não sofrer. Dispersou o seu talento na indecisão.

De dúvida em dúvida, há dois anos foi aprovada em um concurso como funcionária do metrô, e se rendeu à necessidade de trabalhar. No primeiro dia, já a jogaram no guichê de vendas de bilhetes. Tremeu cada minuto das oito horas do primeiro expediente.

Voltou para casa tremendo como o piso da estação. Quase não conseguiu dormir. “Não posso aguentar”, pensou enquanto virava de um a a outro lado na cama. A resolução lhe deu tanto alívio que sonhou até que o despertador a chamasse às 6 da manhã. A mãe avisou-a de que tinha de pegar no serviço dali a uma hora. “Não vou”, anunciou, a cabeça debaixo do travesseiro. A mãe insistiu, trouxe-lhe café com pão e manteiga. Meio a contragosto, prometeu tentar uma última vez. Chegou atrasada porque errou o endereço.

Aos poucos, acostumou-se à rotina – e ao salário baixo. Progrediu, não na carreira, mas por dentro. Às vezes ela pensa que sofreu uma involução interior. Seu sorriso pode ser visto no guichê ou diante das catracas na estação Barra Funda. Logo ela, que sempre se extraviou no tempo e no espaço, tomou gosto de orientar os passageiros. Voltou até ao curso de Inglês, para lidar com os estrangeiros, que lhe enchem de perguntas, e não só sobre itinerários: querem dicas de passeios e sugestões de roteiro cultural.

Mas o que deixou Maura surpresa foi o comportamento dos passageiros. Jamais pensou que as pessoas fossem tão carentes. Passou a notar que as filas diferenciam umas das outras, e cada uma das dezenas de pessoas que compõe as filas tem personalidade própria. Estranhou que em geral elas não compram bilhetes múltiplos. Querem uma passagem de cada vez, talvez para bater papo ou lhe dar bom-dia. 

Fila é área de lazer, concluiu. Uns confessam segredos, outros querem opiniões sobre quaisquer assuntos, pechincham, levam presentes e santinhos. Há quem se aconselhe sobre teorias filosóficas. Um sujeito aparece por lá todos os dias. Espera horas só para, quando chega a sua vez, olhar no fundo do olho de Maura – se é que seu olho tem fundo, pensa, pois não passa de um olho negro raso e úmido. Seria hipnotismo ou xaveco? Outra tarde uma senhora pediu que previsse o seu futuro, sem ligar para quem vinha atrás. Eu mesmo gosto de passar pela estação só para praticar meu inglês com ela. Maura acha graça:. “Neste trabalho, descobri que as pessoas se sentem seguras na fila. E que são muito mais perdidas do que eu!” Enfim, encontrou sua vocação: guru. 

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Somos pais e filhos adotivos

Por: Marcelo Tas - É jornalista e comunicador de TV. Tem três filhos: Luiza, 22 anos, Miguel, 10, e Clarice, 6. É âncora do “CQC” e autor do Blog do Tas. Aceita com gratidão críticas e sugestões sobre essa coluna no e-mail: crescer@marcelotas.com.br  

Tenho amigos de várias idades. Já fui testemunha da transformação de muitos deles de solteiros convictos em casados apaixonados e dedicados a seus parceiros e parceiras. Para a grande maioria dos casais que vi surgir, sempre observei com atenção e alegria o momento inevitável da vontade de ter filhos. Nessa hora, algo cada vez mais comum e triste acontece. O planejamento exigente e cuidadoso dos casais, baseados na ilusão costumeira de que eles é que vão escolher com precisão suíça a hora da chegada dos filhos, se transforma em frustração e ansiedade. O ciclo da vida é um eterno mistério. O tempo, esse velho senhor da razão, não para de colocar armadilhas e surpresas no caminho. O relógio biológico sugere que vivamos a vida como se cada batida do coração fosse a primeira. Mas a frase é dificílima de ser colocada em prática.

Queremos ter o controle de tudo. Quando, por alguma razão, os filhos não chegam, há um risco enorme de fadiga na estrutura do casamento. Nem todo casal deve ter filhos, claro. Mas é inegável que a experiência da paternidade e maternidade dá uma consistência especial ao casamento.

Talvez por conta das novas demandas profissionais, o casamento e os filhos são cada vez mais empurrados para um período mais tardio da vida. É doloroso ver casais gastarem preciosas economias e até recursos inexistentes em médicos e métodos de fertilidade tão incertos quanto desgastantes, materialmente e espiritualmente. O outro lado da moeda, compensador, é ver como a adoção passou a ser uma opção que ganha novo valor nos dias que correm. E como correm...

Emocionado, acompanhei o drama de um casal de amigos que, depois de um longo processo de debate, se decidiu por adotar uma criança. Descobriram, a duras penas, que a chegada do filho adotivo apresentava a mesma dificuldade, senão ainda maior, que a do frustrado processo biológico. A chegada do pequeno ser que iluminou a vida deles teve cenas de cinema. Com direito a mergulho na burocracia selvagem e viagens arriscadas a lugares remotos do país.

Apresentei esse mesmo casal, sugerindo-os como consultores, a um outro casal de amigos brasileiros que mora no exterior com o mesmo drama. Novamente, fui testemunha de cenas comoventes e inesquecíveis. O coração deles se abrindo ao constatar, numa visita ao Brasil, o quanto os filhos adotivos (na ocasião já eram dois!) haviam sido incorporados e amados como filhos pelo casal “consultor”. Apenas filhos, sem o adjetivo: adotivos.

Mais recentemente, um outro casal de amigos adotou uma garota com 7 anos! Pude testemunhar como, com o avançar da convivência, do afeto e das inevitáveis crises entre eles, cada um parece ter nascido para o outro. Tanto os “novos” pais pareciam ter recebido a encomenda perfeita para renovar o casamento deles quanto a linda garota, já grandinha e serelepe, ter nascido para encontrar, um dia, aqueles novos pais.
Quero ainda registrar e agradecer a história enviada pela leitora Patrícia Silva, de Jaguariúna (SP), que inspirou esta coluna. Depois de três anos, e muitas incertezas, na fila do Cadastro Nacional de Adotantes, Patrícia relata com coragem tocante a transformação da vida dela e de seu marido, Gil, com a chegada do pequeno Nicolas. Patrícia sugere que o assunto “adoção” seja abordado de forma mais simples e direta para injetar coragem nos outros casais que vivem o mesmo drama dela. Concordo 100% e digo mais: penso que todos os filhos, de uma forma ou de outra, adotam os seus pais e vice-versa. Somos todos pais e filhos adotivos.

domingo, 1 de janeiro de 2012

FELIZ ANO NOVO!!!

REPÓRTER CIDADE: PLUGADO EM VOCÊ!!!!!!

Que este novo Ano que nasce seja repleto de Realizações, que cada Sonho seja uma Meta e que cada Meta seja abençoada por Deus e alcançada por todos nós.

Esse são os votos do REPÓRTER CIDADE

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Rebeliões, intimidades e desfechos imperfeitos

Aquilo que permanece em nós é o que tece nossos dias– e nem sempre é grandioso aos olhos do mundo. Lembranças íntimas, revoltas necessárias.

Por: Elaine Brum

Jornalista, escritora e  documentarista. Ganhou mais  de 40 prêmios nacionais e  internacionais de reportagem.  É autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada. elianebrum@uol.com.br.






Escrevo do meu não Natal. Neste ano, consegui fazer um acordo com a minha família de que o sentido era o do encontro e o do afeto – e para isso não precisava acontecer na data estabelecida nem pela religião, nem pelo mercado. Marcamos nosso Natal para 6 de janeiro, quando as estradas já se esvaziaram, algumas liquidações de verão começaram em lojas vazias, as passagens aéreas estão mais baratas e o espírito natalino, em geral tenso e agressivo pelo cansaço e pelas obrigações, já foi tarde.

Me escondi num lugar em que pude passar os dias observando a natureza e sua mistura de beleza e violência. Passei a maior parte do tempo seguindo a uma distância regulamentar um casal de bem-te-vis alimentando os filhotes em um ninho sempre ameaçado por um gato amarelo, um quero-quero aflito escoltando seu filho aleijado de uma perna enquanto patrulhava a área com passadas marciais, um formigão que repete sempre o mesmo trajeto diante de mim, manhã após amanhã, aparentemente sem sentido, mas com muita convicção, a quem apelidamos de “Sem Noção”. E há um pardal, o “Folga”, que come qualquer coisa, inclusive os enfeites da sala.

Tenho certeza de que, até o fim desta semana, Folga vai tentar comer algumas letras do meu computador. Então, não se surpreendam se na próxima coluna eu apresentar aqui uma língua saqueada de vogais e consoantes, digeridas no estômago desse pardal petulante entre pedaços de pão e sementes de melancia. O Folga nada entende de antropofagia nem conhece Oswald de Andrade e, neste exato momento, me olha com um interesse guloso. Acho que pensa se vale a pena dar uma bicadinha nos meus olhos ou é melhor provar outra freguesia. (“Seja esperto, Folga, e mantenha essas penas no corpo!”, digo a ele, que se faz de canarinho.)

Não foi um ano fácil, o que passou. Acho que para o mundo – e também para o nosso mundo bem aqui. Acabo de terminar um pequeno livro, escrito pela historiadora e psicanalista francesa Elizabeth Roudinesco – “Lacan, a despeito de tudo e de todos” (Zahar). E duas frases se aplicam muito ao balanço inevitável que, mais do que o de um ano que passou, é de uma época que não passa. A primeira delas é: “Nossa época é dividida entre um desejo de fundamentalismo e uma busca ilimitada do gozo”. Voltarei a essa ideia numa próxima coluna. Ela vale não só para a vivência individual, mas também para a política.

A outra se encaixa em cada uma das muitas violências que testemunhamos no Brasil neste 2011 pródigo em barbáries: contra índios, extrativistas e quilombolas; contra homossexuais; contra moradores de rua; contra a Amazônia (onde hoje é travado o debate central sobre o país que seremos e, portanto, sobre o que e quem somos nós). Foi um ano assinalado pela violência contra todos os “outros” que nos ameaçam com sua diferença e por isso devem ser destruídos ou subjugados aos interesses mais imediatos e mesquinhos, antes que corramos o risco de conhecê-los e sermos transformados pela experiência sempre transtornadora do reconhecimento. A frase, que se refere “às relações características do individualismo do mundo democrático moderno”, é esta: “Destruir o outro no lugar de aceitar o conflito”.

Na política de Estado, é também isso que temos testemunhado. Os conflitos de ideias e de visões de mundo que nos levariam a um país mais rico, diverso e desejante, com mais de todos nós dentro de si, está sendo calado com o que há de mais abjeto no exercício do poder, com os instrumentos da Lei a serviço da injustiça, de uma suposta governabilidade e de velhos, velhíssimos interesses fisiológicos.

Temos sido atacados também, em todas as instâncias, com o cada vez mais nefasto discurso do bem, em que o Estado entra na nossa casa disposto a executar “o que é bom para nós” e, se não aceitamos, é porque ainda somos imaturos como filhos que não cresceram. Neste ano que vem, vou continuar fugindo dessa gente que diz, com o olhar fugidio dos fanáticos encastelados em cargos de confiança ou em lugares de poder: “É para o teu próprio bem...”.

Penso que cabe a nós manter o conflito vivo – o das ideias, sempre vale a pena deixar claro – e pegar à unha o desafio que assusta e fascina, que é o de construir um novo jeito de ser na política. E para isso contamos com os novos instrumentos de um mundo novidadeiro e mutante, como em raros momentos históricos, onde aquilo que ainda nos esmaga já começa a cheirar a podre – de novo. Ainda tateamos na invenção desse novo mundo, que só tem chance de ser melhor que este se conseguir acolher os conflitos e dialogar com eles – e não afogá-los em autoritarismo.

Em homenagem à nossa teimosia de seguir buscando a possibilidade em terra ensanguentada, reedito uma outra grande frase do ano que termina. Desta vez do escritor uruguaio Eduardo Galeano, diante das manifestações dos jovens na Espanha: “Este mundo de merda está grávido de outro!”. (Estes 11 minutos de lucidez e de esperança, que pode ser visto clicando aqui, é meu presente de Natal para vocês.)

Mas agora, depois de renovar a revolta necessária à manutenção da esperança, me volto para dentro de mim. E nos próximos parágrafos compartilho com vocês o que me faz sorrir, para além de todos os ganhos e perdas, porque me recuso a ser limitada por essa conta sem imaginação. Por mais que tentemos escapar dessas datas ritualísticas, elas nos fazem pensar no que vivemos, até porque boa parte de nós só tem tempo para si nesses feriados. Proponho aqui uma conta que não é a das metas grandiosas, mas a das descobertas pequenas, que, ao final, são o que nos mantém respirando no tecido asfixiante e por vezes sintético da vida cotidiana.

Por um simples impulso de compartilhar e de estimular uma reflexão que cada um possa fazer por seus próprios desejos e caminhos, me arrisco aqui ao prosaico e ao piegas, porque também sou feita dos dois, ainda bem. Como disse Galeano, nesse depoimento antológico: “Eu não quero ser uma cabeça que rola por aí. Sou uma pessoa. Sou cabeça, sexo, barriga, tudo. (...) Cuidado! Temos que raciocinar e sentir. E, quando a razão se divorcia do coração, comece a tremer, porque este personagem pode levar ao fim da existência humana no planeta. Não, eu não creio nisso. Creio nessa fusão contraditória, difícil mas necessária, entre o que se sente e o que se pensa. (...) A mim me interessa (a sabedoria) que combina o cérebro com as tripas. Essa que combina tudo o que somos”.
A seguir, minha lista de pequenas epifanias de 2011:

1) Ao longo do ano, passo semanas sem datas e motivos com os meus pais na cidade em que eu nasci, no interior gaúcho. Meu pai tem 81 anos, minha mãe, 76. Nesta segunda, fazem 58 anos de casamento. Gosto de acompanhar a rotina sistemática deles, como um balé cada vez mais lento, ainda que a mãe corra pela casa com seus pés e joelhos problemáticos, contrariando, como é do seu feitio, todos os vaticínios médicos. Jantamos às 19h e então vem a melhor parte. Vamos para o quarto deles assistir ao JN e à novela das nove, ritual sagradíssimo na hierarquia dos dias dos meus pais. Eles sentam cada um em sua poltrona. Eu deito na cama deles. Tenho ali a consciência grandiosa de como sou privilegiada por, aos 45 anos, fingir que ainda sou menina, com meus pais velando o meu sono. E durmo muito antes de a novela começar. Depois, volto para a minha cama cambaleando, e a mulher retorna em mim. Mas alargada pela menina que espia como quem acabou de fazer arte, inventando uma infância quando já está perto de ser avó.

2) Em 2011, os bebês desembarcaram na minha vida pelas barrigas de amigas com hormônios em fúria. E também pelo desejo de um irmão cientista que até então tinha jurado que jamais botaria no mundo um “bípede desplumado”. Olhei com desconfiança redobrada para aquelas caras de velhinhos, só para descobrir que a natureza faz destas criaturas uns bichos insidiosos. Minha afilhada, Catarina, é tão fofurenta que temo a força da gravidade e quero botar um sutiã nas bochechas da guria. Não sei mesmo onde vão parar aquelas bochechas de buldogue. Como ela vai conseguir caminhar com aquelas bolotas puxando perigosamente para baixo, finjo preocupar-me? Mas, quando estou triste, é neste sutiã de bochechas que penso e de imediato ganho um sorriso de Mona Lisa.
Meu sobrinho, Rodrigo, fez o favor inestimável de contrariar todas as expectativas do seu pai, que leu com rigor os livros científicos existentes sobre o funcionamento do cérebro dos bebês e do desenvolvimento motor e blábláblá. Meu irmão do meio, que sempre mediou a vida pelo conhecimento apreendido nos livros, foi tomado de assalto por um humano que não seguia nenhum manual, mesmo que o compêndio tivesse vindo de Harvard. Para começar, em vez de desplumado, Rodrigo tem a cabeça coberta por uma plumagem ruiva com mechas brancas que ninguém sabe de onde veio, embora a avó materna jure que era igualzinha. E ainda não se tornou um bípede. Mas tem se esforçado. Muito. Quando estou triste, materializo diante de mim sua figura imponente (é um bebê enorme!), em pé, agarrado às grades do berço, com sua empáfia de guerreiro viking, segundos antes de cair de bunda no colchão. Neste efêmero instante em que se equilibra sobre as duas pernas, ele me diz, com seu olhar de máximo orgulho: “Olha como eu sou lindo e fico em pé. E ainda por cima tenho DOIS dentes!”. A vida sempre vale a pena depois dessa memória.

3) Meu irmão mais velho me levava para Passo Fundo com a minha mãe para eu pegar o avião para São Paulo quando, de repente, tivemos a conversa mais verdadeira possivelmente de nossa vida inteira. Ele viveu tempos duros, o meu irmão. Tempos que eu só acompanhei de longe. Fiquei ali, escutando no banco de trás do carro as palavras que vinham de um desejo de encontro – e não, como é na maioria das vezes, em nossa relação com o outro, um preenchimento superficial de espaço que ninguém quer preencher, mas sente que precisa, ou uma disputa de poder e de lugar. Foi um momento grandioso. Porque é sempre raro e grande encontrar alguém. Neste instante, a máquina do mundo se abre diante de nós. E não importa mais ser poeira em um universo que não compreendemos. Estamos ali, em nós mesmos, ainda que por um átimo de tempo. Enlaçados em uma história de redemunhos, mas conscientes de que a vida humana é assim, um possível impossível.

4) Desde que os bebês apareceram, descobri que os homens também ovulam. Meu marido nunca quis filhos. Mas apaixonou-se de tal maneira pelos filhos dos outros não como um pai, mas como um tio e um dindo disposto a solapar qualquer esforço de botar limites que os pais possam vir a ter, que passou a gastar a maior parte de seu tempo livre criando armadilhas para filhotes humanos. Num destes dias de ovulação ensandecida, embrenhou-se na 25 de Março, a rua mais muvuquenta e barata do comércio do centro de São Paulo, praticamente uma instituição, e voltou de lá com uma piscininha de plástico. Instalou- a bem no meio da sala. Em vez de água, colocou edredons e almofadas para que os bebês pudessem dormir e brincar. Mas, como somos apenas eu e ele que moramos lá, quem acaba na piscininha seca somos nós. E volta e meia é de dentro dela, preciso confessar antes que o ano acabe, que escrevo esta coluna. Toda feliz porque tenho ao meu lado um homem tão corajoso que pode se dar ao luxo de virar menino.
5) Estava no aeroporto de Congonhas esperando pela minha filha que chegaria para me visitar. Minha filha tem 29 anos e somos ligadas por um amor tão profundo que nunca sei o que fazer primeiro quando ela aparece: se a encho de feijão, se a boto no colo fingindo que ela tem 5 anos ou se tomamos um vinho conversando sobre nossas últimas descobertas existenciais. Toda faceira porque sei que ao longo dos dias faremos tudo isso e mais um pouco. Estava lá quando avistei de repente uma mulher linda. Ela caminhava como se fosse dona do seu mundo, imersa nele não com prepotência, mas com leveza. Quem cruzasse o caminho daquela mulher podia esperar dela uma força que vem da delicadeza. Seus cabelos loiros e longos esvoaçavam como se batidos por uma brisa inexistente, e a saia ondulava ao redor de suas pernas a cada passo. Como é linda, eu pensei. Então a mulher focou uns olhos que eu descobri azuis bem nos meio do castanho dos meus, sorriu pra mim e caminhou na minha direção. Era a minha filha.
Termino em momento épico. Alertada por um quero-quero esganiçado, acabo de salvar um ovo de bem-te-vi da bocarra de um calango. Segundos depois de me sentir heroica, percebi que tinha sido injusta com o lagarto, roubado de sua ceia natalina pela minha interferência em curso indevido. A vida é assim, um campo minado de contradições e desfechos imperfeitos.