quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Rebeliões, intimidades e desfechos imperfeitos

Aquilo que permanece em nós é o que tece nossos dias– e nem sempre é grandioso aos olhos do mundo. Lembranças íntimas, revoltas necessárias.

Por: Elaine Brum

Jornalista, escritora e  documentarista. Ganhou mais  de 40 prêmios nacionais e  internacionais de reportagem.  É autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada. elianebrum@uol.com.br.






Escrevo do meu não Natal. Neste ano, consegui fazer um acordo com a minha família de que o sentido era o do encontro e o do afeto – e para isso não precisava acontecer na data estabelecida nem pela religião, nem pelo mercado. Marcamos nosso Natal para 6 de janeiro, quando as estradas já se esvaziaram, algumas liquidações de verão começaram em lojas vazias, as passagens aéreas estão mais baratas e o espírito natalino, em geral tenso e agressivo pelo cansaço e pelas obrigações, já foi tarde.

Me escondi num lugar em que pude passar os dias observando a natureza e sua mistura de beleza e violência. Passei a maior parte do tempo seguindo a uma distância regulamentar um casal de bem-te-vis alimentando os filhotes em um ninho sempre ameaçado por um gato amarelo, um quero-quero aflito escoltando seu filho aleijado de uma perna enquanto patrulhava a área com passadas marciais, um formigão que repete sempre o mesmo trajeto diante de mim, manhã após amanhã, aparentemente sem sentido, mas com muita convicção, a quem apelidamos de “Sem Noção”. E há um pardal, o “Folga”, que come qualquer coisa, inclusive os enfeites da sala.

Tenho certeza de que, até o fim desta semana, Folga vai tentar comer algumas letras do meu computador. Então, não se surpreendam se na próxima coluna eu apresentar aqui uma língua saqueada de vogais e consoantes, digeridas no estômago desse pardal petulante entre pedaços de pão e sementes de melancia. O Folga nada entende de antropofagia nem conhece Oswald de Andrade e, neste exato momento, me olha com um interesse guloso. Acho que pensa se vale a pena dar uma bicadinha nos meus olhos ou é melhor provar outra freguesia. (“Seja esperto, Folga, e mantenha essas penas no corpo!”, digo a ele, que se faz de canarinho.)

Não foi um ano fácil, o que passou. Acho que para o mundo – e também para o nosso mundo bem aqui. Acabo de terminar um pequeno livro, escrito pela historiadora e psicanalista francesa Elizabeth Roudinesco – “Lacan, a despeito de tudo e de todos” (Zahar). E duas frases se aplicam muito ao balanço inevitável que, mais do que o de um ano que passou, é de uma época que não passa. A primeira delas é: “Nossa época é dividida entre um desejo de fundamentalismo e uma busca ilimitada do gozo”. Voltarei a essa ideia numa próxima coluna. Ela vale não só para a vivência individual, mas também para a política.

A outra se encaixa em cada uma das muitas violências que testemunhamos no Brasil neste 2011 pródigo em barbáries: contra índios, extrativistas e quilombolas; contra homossexuais; contra moradores de rua; contra a Amazônia (onde hoje é travado o debate central sobre o país que seremos e, portanto, sobre o que e quem somos nós). Foi um ano assinalado pela violência contra todos os “outros” que nos ameaçam com sua diferença e por isso devem ser destruídos ou subjugados aos interesses mais imediatos e mesquinhos, antes que corramos o risco de conhecê-los e sermos transformados pela experiência sempre transtornadora do reconhecimento. A frase, que se refere “às relações características do individualismo do mundo democrático moderno”, é esta: “Destruir o outro no lugar de aceitar o conflito”.

Na política de Estado, é também isso que temos testemunhado. Os conflitos de ideias e de visões de mundo que nos levariam a um país mais rico, diverso e desejante, com mais de todos nós dentro de si, está sendo calado com o que há de mais abjeto no exercício do poder, com os instrumentos da Lei a serviço da injustiça, de uma suposta governabilidade e de velhos, velhíssimos interesses fisiológicos.

Temos sido atacados também, em todas as instâncias, com o cada vez mais nefasto discurso do bem, em que o Estado entra na nossa casa disposto a executar “o que é bom para nós” e, se não aceitamos, é porque ainda somos imaturos como filhos que não cresceram. Neste ano que vem, vou continuar fugindo dessa gente que diz, com o olhar fugidio dos fanáticos encastelados em cargos de confiança ou em lugares de poder: “É para o teu próprio bem...”.

Penso que cabe a nós manter o conflito vivo – o das ideias, sempre vale a pena deixar claro – e pegar à unha o desafio que assusta e fascina, que é o de construir um novo jeito de ser na política. E para isso contamos com os novos instrumentos de um mundo novidadeiro e mutante, como em raros momentos históricos, onde aquilo que ainda nos esmaga já começa a cheirar a podre – de novo. Ainda tateamos na invenção desse novo mundo, que só tem chance de ser melhor que este se conseguir acolher os conflitos e dialogar com eles – e não afogá-los em autoritarismo.

Em homenagem à nossa teimosia de seguir buscando a possibilidade em terra ensanguentada, reedito uma outra grande frase do ano que termina. Desta vez do escritor uruguaio Eduardo Galeano, diante das manifestações dos jovens na Espanha: “Este mundo de merda está grávido de outro!”. (Estes 11 minutos de lucidez e de esperança, que pode ser visto clicando aqui, é meu presente de Natal para vocês.)

Mas agora, depois de renovar a revolta necessária à manutenção da esperança, me volto para dentro de mim. E nos próximos parágrafos compartilho com vocês o que me faz sorrir, para além de todos os ganhos e perdas, porque me recuso a ser limitada por essa conta sem imaginação. Por mais que tentemos escapar dessas datas ritualísticas, elas nos fazem pensar no que vivemos, até porque boa parte de nós só tem tempo para si nesses feriados. Proponho aqui uma conta que não é a das metas grandiosas, mas a das descobertas pequenas, que, ao final, são o que nos mantém respirando no tecido asfixiante e por vezes sintético da vida cotidiana.

Por um simples impulso de compartilhar e de estimular uma reflexão que cada um possa fazer por seus próprios desejos e caminhos, me arrisco aqui ao prosaico e ao piegas, porque também sou feita dos dois, ainda bem. Como disse Galeano, nesse depoimento antológico: “Eu não quero ser uma cabeça que rola por aí. Sou uma pessoa. Sou cabeça, sexo, barriga, tudo. (...) Cuidado! Temos que raciocinar e sentir. E, quando a razão se divorcia do coração, comece a tremer, porque este personagem pode levar ao fim da existência humana no planeta. Não, eu não creio nisso. Creio nessa fusão contraditória, difícil mas necessária, entre o que se sente e o que se pensa. (...) A mim me interessa (a sabedoria) que combina o cérebro com as tripas. Essa que combina tudo o que somos”.
A seguir, minha lista de pequenas epifanias de 2011:

1) Ao longo do ano, passo semanas sem datas e motivos com os meus pais na cidade em que eu nasci, no interior gaúcho. Meu pai tem 81 anos, minha mãe, 76. Nesta segunda, fazem 58 anos de casamento. Gosto de acompanhar a rotina sistemática deles, como um balé cada vez mais lento, ainda que a mãe corra pela casa com seus pés e joelhos problemáticos, contrariando, como é do seu feitio, todos os vaticínios médicos. Jantamos às 19h e então vem a melhor parte. Vamos para o quarto deles assistir ao JN e à novela das nove, ritual sagradíssimo na hierarquia dos dias dos meus pais. Eles sentam cada um em sua poltrona. Eu deito na cama deles. Tenho ali a consciência grandiosa de como sou privilegiada por, aos 45 anos, fingir que ainda sou menina, com meus pais velando o meu sono. E durmo muito antes de a novela começar. Depois, volto para a minha cama cambaleando, e a mulher retorna em mim. Mas alargada pela menina que espia como quem acabou de fazer arte, inventando uma infância quando já está perto de ser avó.

2) Em 2011, os bebês desembarcaram na minha vida pelas barrigas de amigas com hormônios em fúria. E também pelo desejo de um irmão cientista que até então tinha jurado que jamais botaria no mundo um “bípede desplumado”. Olhei com desconfiança redobrada para aquelas caras de velhinhos, só para descobrir que a natureza faz destas criaturas uns bichos insidiosos. Minha afilhada, Catarina, é tão fofurenta que temo a força da gravidade e quero botar um sutiã nas bochechas da guria. Não sei mesmo onde vão parar aquelas bochechas de buldogue. Como ela vai conseguir caminhar com aquelas bolotas puxando perigosamente para baixo, finjo preocupar-me? Mas, quando estou triste, é neste sutiã de bochechas que penso e de imediato ganho um sorriso de Mona Lisa.
Meu sobrinho, Rodrigo, fez o favor inestimável de contrariar todas as expectativas do seu pai, que leu com rigor os livros científicos existentes sobre o funcionamento do cérebro dos bebês e do desenvolvimento motor e blábláblá. Meu irmão do meio, que sempre mediou a vida pelo conhecimento apreendido nos livros, foi tomado de assalto por um humano que não seguia nenhum manual, mesmo que o compêndio tivesse vindo de Harvard. Para começar, em vez de desplumado, Rodrigo tem a cabeça coberta por uma plumagem ruiva com mechas brancas que ninguém sabe de onde veio, embora a avó materna jure que era igualzinha. E ainda não se tornou um bípede. Mas tem se esforçado. Muito. Quando estou triste, materializo diante de mim sua figura imponente (é um bebê enorme!), em pé, agarrado às grades do berço, com sua empáfia de guerreiro viking, segundos antes de cair de bunda no colchão. Neste efêmero instante em que se equilibra sobre as duas pernas, ele me diz, com seu olhar de máximo orgulho: “Olha como eu sou lindo e fico em pé. E ainda por cima tenho DOIS dentes!”. A vida sempre vale a pena depois dessa memória.

3) Meu irmão mais velho me levava para Passo Fundo com a minha mãe para eu pegar o avião para São Paulo quando, de repente, tivemos a conversa mais verdadeira possivelmente de nossa vida inteira. Ele viveu tempos duros, o meu irmão. Tempos que eu só acompanhei de longe. Fiquei ali, escutando no banco de trás do carro as palavras que vinham de um desejo de encontro – e não, como é na maioria das vezes, em nossa relação com o outro, um preenchimento superficial de espaço que ninguém quer preencher, mas sente que precisa, ou uma disputa de poder e de lugar. Foi um momento grandioso. Porque é sempre raro e grande encontrar alguém. Neste instante, a máquina do mundo se abre diante de nós. E não importa mais ser poeira em um universo que não compreendemos. Estamos ali, em nós mesmos, ainda que por um átimo de tempo. Enlaçados em uma história de redemunhos, mas conscientes de que a vida humana é assim, um possível impossível.

4) Desde que os bebês apareceram, descobri que os homens também ovulam. Meu marido nunca quis filhos. Mas apaixonou-se de tal maneira pelos filhos dos outros não como um pai, mas como um tio e um dindo disposto a solapar qualquer esforço de botar limites que os pais possam vir a ter, que passou a gastar a maior parte de seu tempo livre criando armadilhas para filhotes humanos. Num destes dias de ovulação ensandecida, embrenhou-se na 25 de Março, a rua mais muvuquenta e barata do comércio do centro de São Paulo, praticamente uma instituição, e voltou de lá com uma piscininha de plástico. Instalou- a bem no meio da sala. Em vez de água, colocou edredons e almofadas para que os bebês pudessem dormir e brincar. Mas, como somos apenas eu e ele que moramos lá, quem acaba na piscininha seca somos nós. E volta e meia é de dentro dela, preciso confessar antes que o ano acabe, que escrevo esta coluna. Toda feliz porque tenho ao meu lado um homem tão corajoso que pode se dar ao luxo de virar menino.
5) Estava no aeroporto de Congonhas esperando pela minha filha que chegaria para me visitar. Minha filha tem 29 anos e somos ligadas por um amor tão profundo que nunca sei o que fazer primeiro quando ela aparece: se a encho de feijão, se a boto no colo fingindo que ela tem 5 anos ou se tomamos um vinho conversando sobre nossas últimas descobertas existenciais. Toda faceira porque sei que ao longo dos dias faremos tudo isso e mais um pouco. Estava lá quando avistei de repente uma mulher linda. Ela caminhava como se fosse dona do seu mundo, imersa nele não com prepotência, mas com leveza. Quem cruzasse o caminho daquela mulher podia esperar dela uma força que vem da delicadeza. Seus cabelos loiros e longos esvoaçavam como se batidos por uma brisa inexistente, e a saia ondulava ao redor de suas pernas a cada passo. Como é linda, eu pensei. Então a mulher focou uns olhos que eu descobri azuis bem nos meio do castanho dos meus, sorriu pra mim e caminhou na minha direção. Era a minha filha.
Termino em momento épico. Alertada por um quero-quero esganiçado, acabo de salvar um ovo de bem-te-vi da bocarra de um calango. Segundos depois de me sentir heroica, percebi que tinha sido injusta com o lagarto, roubado de sua ceia natalina pela minha interferência em curso indevido. A vida é assim, um campo minado de contradições e desfechos imperfeitos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário