segunda-feira, 5 de setembro de 2011

A sibutramina e o teste da tolerância

Quando o assunto é obesidade, a sociedade se divide entre o preconceito e o politicamente correto.

Por Cristiane Segatto - Revista Época

Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 15 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo. Para falar com ela, o e-mail de contato é: cristianes@edglobo.com.br

Vamos começar com um jogo. Responda às questões abaixo com “falso” ou “verdadeiro”. Não vale tentar parecer politicamente correto. Responda com o máximo de sinceridade, de acordo com a sua opinião. Se preferir, faça o teste sozinho, em silêncio. O segredo é não temer o julgamento alheio.

1) Obesos são preguiçosos

2) Algumas pessoas estão fadadas a ser gordas

3) Se estivesse selecionando um funcionário e entrevistasse dois candidatos com habilidades e currículo semelhantes, contrataria o mais magro

4) Só é gordo quem quer

5) Ninguém precisa de remédio para emagrecer

6) Prefiro ter uma filha anoréxica a ter uma filha gorda

7) Gordos são feios, mas têm bom humor

Quanto mais vezes você concordar com as frases acima, mais contaminado pelo preconceito contra os obesos você deve estar. Uma versão mais elaborada desse teste é parte de uma pesquisa realizada pela antropóloga Alexandra A. Brewis, da Universidade do Estado do Arizona, nos Estados Unidos. O trabalho foi publicado no periódico Current Anthropology.

Várias pesquisas anteriores haviam demonstrado que o excesso de peso se tornou um estigma. Virou uma marca socialmente imputada aos obesos como prova de indolência - entre tantos outros preconceitos. O que Alexandra fez foi avaliar de que forma a visão pejorativa predominante na sociedade americana se espalhou globalmente. Inclusive em populações ou grupos que, historicamente, encaravam as curvas como um sinal de beleza e saúde.


Setecentas pessoas participaram da pesquisa em países da “anglosfera” (Estados Unidos, Inglaterra e Nova Zelândia), em nações da América Latina (México, Argentina e Paraguai) e em sociedades que tradicionalmente preferem corpos volumosos, como os nativos de Porto Rico e da Samoa americana (que fica na Polinésia).

Ela observou altos níveis de estigma em todas as sociedades estudadas. “Em pouco tempo, as percepções negativas sobre os obesos vão se tornar norma cultural mesmo nas comunidades em que as formas opulentas eram, até recentemente, vistas como atraentes”, afirma Alexandra.


O que estimula esse fenômeno? O fator óbvio, aquele que está na cabeça de todos nós, é o padrão de beleza magérrima cultuado pela mídia. Alexandra enxergou outro: as campanhas de saúde pública que apontam a obesidade como uma doença e, muitas vezes, criticam diretamente os indivíduos em vez dos fatores ambientais e sociais que levam ao ganho de peso.

“O excesso de mensagens negativas sobre saúde carregam com elas muitas mensagens morais negativas”, diz Alexandra. Segundo ela, expressões do tipo “a culpa é sua” ou “você pode mudar” são contraproducentes.

É um ponto que merece reflexão. Principalmente no momento em que as autoridades sanitárias debatem a proibição de inibidores de apetite. Desde fevereiro, a Anvisa discute se retira ou não do mercado a sibutramina (a principal escolha dos médicos que receitam drogas para tratar a obesidade) e outros três medicamentos: anfepramona, femproporex e mazindol.

A decisão era aguardada para quarta-feira, mas foi postergada mais uma vez. A tendência é a de que a agência mantenha a sibutramina no mercado, mas exija que o paciente e o médico declarem saber que o remédio aumenta o risco de problemas cardiovasculares. Provavelmente, os outros três remédios serão proibidos.

Para quem não acompanhou o que está por trás desse debate, aí vai um resumo: a sibutramina atua no cérebro e aumenta a sensação de saciedade. É um tratamento barato (R$ 20 por mês), mas incerto. Alguns pacientes não emagrecem nada. Outros podem perder mais de 20 quilos.

A justificativa da Anvisa a favor da proibição é um estudo de seis anos realizado pelo próprio laboratório Abbott, o fabricante do Reductil (a primeira marca de sibutramina a chegar ao mercado) com 10 mil pacientes, a pedido da Agência Europeia de Medicamentos (Emea). Foram incluídos apenas obesos acima de 55 anos, com diabetes e histórico de problemas cardiovasculares.

 
No grupo que recebeu placebo (comprimidos sem efeito), o índice de infarto, AVC ou outros problemas cardiovasculares foi de 10%. No grupo que tomou sibutramina, o índice foi de 11,6%. Ou seja: o risco aumentou 16%. Nenhuma morte foi registrada.


Embora o estudo tenha sido realizado com um grupo de alto risco, as autoridades europeias estenderam as conclusões para a população geral e proibiram a venda do remédio em janeiro de 2010.

A Abbott também foi pressionada pela agência americana FDA e decidiu retirar a droga dos Estados Unidos. O mesmo ocorreu no Brasil no final de 2010, mas a sibutramina continuou disponível na forma de produtos genéricos ou similares. Restaria nas farmácias apenas o orlistat, conhecido pela marca Xenical. Ele não atua no cérebro e tem um efeito emagrecedor menor.


Durante toda a discussão, várias afirmações preconceituosas ou descabidas vieram à tona. Coisas do tipo: qualquer um pode emagrecer sem remédios; há abuso de inibidores de apetite no Brasil; os endocrionologistas são contra a proibição dos remédios porque os consultórios deles vão ficar vazios.

Nenhuma dessas afirmações está baseada em fatos. Seria maravilhoso se todas as pessoas emagrecessem apenas com reeducação alimentar e atividade física. Essa é, sem dúvida, a opção mais saudável, barata e duradoura. Infelizmente, não funciona para todo mundo.

“No grupo de pacientes com grau de obesidade que varia de leve a mórbida, 70% não emagrecem sem remédio. Podem até emagrecer por um tempo, com exercícios ou dietas, mas vão recuperar o peso”, diz o endocrinologista Alfredo Halpern, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

É verdade que muita gente toma inibidores de apetite de forma indiscriminada, irresponsável e, muitas vezes, desnecessária. Mas os números demonstraram que não há excesso de consumo de sibutramina no Brasil.

“No ano passado, houve 1,9 milhão prescrições. Isso é suficiente para tratar apenas 1,7% dos 19 milhões de brasileiros obesos”, diz Ricardo Meirelles, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia.

Em vez de proibir os emagrecedores, as autoridades sanitárias deveriam aumentar o controle sobre a prescrição. Se esses remédios baratos (hoje encontrados apenas na forma de genéricos e similares) saírem do mercado, os ricos terão a opção de se tratar com alguns antidepressivos, anticonvulsivantes e outros remédios que, como efeito colateral, podem provocar perda de peso.

E os pobres? Para variar, ficarão sem opção.

Antropólogos como a americana Alexandra podem não gostar, mas de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) a obesidade é uma doença. Uma doença complexa, influenciada por razões sociais, econômicas, biológicas, emocionais e culturais. À medida que a pessoa sai do sobrepeso e caminha para a obesidade mórbida, a saúde fica cada vez mais comprometida.

A obesidade representa hoje um dos maiores desafios de saúde pública porque aumenta o risco de males como diabetes, infarto, AVC e câncer. Não é razoável imaginar que um obeso grave, com articulações comprometidas e joelhos sobrecarregados, possa sair correndo no parque se estiver motivado.

“É um tremendo preconceito achar que o obeso não emagrece porque não tem vergonha na cara”, diz o endocrinologista Walmir Coutinho, da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso).

Por outro lado, vitimizar os obesos, tratá-los como seres incapazes de governar sua vida, assumir suas fraquezas e mudar seu destino também me parece injusto e hipócrita.

Assim como os magros, os gordos não são santos. Têm defeitos, sucumbem a tentações, procrastinam. Não devem ser tratados como vítimas indefesas de seus genes, do ambiente, da cultura, da condição social. Têm livre arbítrio e capacidade de lutar contra uma situação física e emocional que coloca a vida em risco.

Preconceito em relação à obesidade, nas ruas ou nos gabinetes de Brasília, não ajuda. O discurso politicamente correto que vitimiza os gordos também não.

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