Para os histéricos com um discurso erva daninha sobre esta “primavera árabe” e para os eternamente floridos, aqui vai uma mensagem de alguém que devemos cultivar. O nome dele é Salman Rushdie, o escritor que sabe dos perigos do fundamentalismo islâmico. Afinal, ele foi alvo de uma fatwa, mais especificamente, de uma sentença de execução ordenada por aquela flor de pessoa que era o aiatolá Khomeini. Rushdie está vivo e é vivo para falar coisa com coisa sobre as eleições deste último domingo na Tunisia para uma assembléia constituinte.
A mensagem via Twitter, que eu vou traduzir de forma liberal, é a seguinte: dia de eleição, primeira eleição livre depois da “primavera árabe”. Os islamistas vão ganhar? Se isto acontecer, eles serão moderados como prometeram? Grande momento.
Aí, perguntado por um seguidor no Twitter se ele continuaria a dar pancada no Nahda se o partido islâmico “moderado”, como se projeta, tiver uma sólida vitória, Rushdie responde: depende se o partido se tornar opressor. Muitos regimes opressores foram levados ao poder pelo voto. Vamos ver e esperar.
Eu vou esperar com Rushdie, naquela mescla de esperança e apreensão. Ambiguidade é o sentimento adequado quando se trata destes partidos “moderados” islâmicos, com mensagens dúbias, com um discurso para a imprensa internacional e outro para a base, que também esperou um tempão e agora quer a sua vez. Já escrevi um texto na sexta-feira sobre a Tunísia. O pequeno país na África do Norte merece um segundo na sequência, enquanto aguardamos os resultados desta eleição histórica, que podem sair nesta segunda-feira ou na terça.
A promessa de Rachid Ghannouchi, o líder do Nahda, é uma composição com outros partidos, inclusive seculares, como única forma de governar o país. Este veterano político que passou mais de 20 anos no exílio (não em um paraíso islâmico, mas na Grã-Bretanha) disse aos jornalistas que sua meta “é estabelecer fundações de um sistema democrático, sólido, sustentável e irreversível na Tunísia”. Alguém vota contra? Vamos torcer contra o sucesso do casamento entre democracia e islamismo para provar que a região é um caso perdido? Eu não, embora não tenha gostado do discurso da “libertação” (que não é sinônimo de democracia) feito em Bengazi no domingo pelo líder do Conselho Nacional de Transição, Mustafa Abdul Jalil, sinalizando que a lei islâmica será a base na Líbia pós-Kadafi.
Apenas um pouquinho de contextualização: políticos veteranos como Ghannouchi, assim como os companheiros da Irmandade Muçulmana no Egito, onde haverá eleições no final de novembro, sabem que precisam ir devagar com o andor. Ghannouchi já perdeu quando os islamistas se saíram bem em um ensaio de eleição na Tunísia em 1989. Acabou no exílio. Na mesma época, o Exército na Argélia resolveu intervir quando um partido islâmico venceu eleições. O resultado foi uma década de sangrenta guerra civil. Para Ghannouchi, interessa ganhar, mas não ganhar de muito. E ele vai ganhar com o appeal da mensagem que mistura o caminho do islamismo com a promessa de justiça social. Mais do que promessa, partidos como Nahda são craques no assistencialismo e na redenção dos pobres.
E partidos como o dele ganham numa fase inicial. Estão mais organizados e aprenderam a sobreviver na luta contra a ditadura. Quem sabe, inclusive a ambiguidade seja genuina. Políticos como Ghannouchi podem realmente estar divididos entre a necessidade de assegurar o respeito às liberdades civis, como deseja o mundo civilizado, e a promessa de uma lei islâmica mais rigorosa, como deseja a base. Ademais, é preciso distinguir quem é quem no espectro político. Na “primavera árabe”, Nahda e Irmandade Muçulmana emergem no centro, entre os ultraconservadores salafistas (que pregam uma interpretação literal do Corão) e os liberais. Por contingência e posição no espectro, alguém como Ghannouchi pode acabar atuando de forma pragmática. Como disse o mestre Rushdie, é preciso ver e esperar.
De qualquer forma, Ghannouchi e os “moderados” islâmicos não têm como monopolizar na assembléia constituinte. Esta é uma realidade política da Tunísia e será assim no Egito, um país obviamente muito mais importante. A realidade é uma oportunidade para grupos não islâmicos montarem uma base mais sólida de apoio, mesmo que numa fase inicial o desempenho eleitoral seja pífio.
Muitos vão dizer que está tudo escrito, não precisamos esperar, como o escritor Rushdie. O que querem afinal? Voltar na história? Reler o livro de trás para frente? Isto outros já fazem.
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