segunda-feira, 3 de outubro de 2011

As vitórias contra o câncer infantil

Para melhorar a saúde, não basta reclamar do governo. O exemplo da ONG que cura 70% das crianças com câncer que batem à sua porta.

Por: Cristiane Segatto

A presidente Dilma Rouseff afirmou nesta semana que a saúde enfrenta um sério problema de gestão. Você já ouviu isso antes, não é? De outros governantes, de gente de qualquer partido, de candidatos e de eleitos. A história é sempre a mesma: antes da eleição, reina o discurso de salvador da pátria. Depois da eleição vem a conversa realista: “Vejam bem, a saúde exige um choque de gestão, precisamos criar um novo imposto para financiá-la, a coisa é complicada, estamos avançando etc”.

Enquanto isso, a saúde continua sendo a maior preocupação dos brasileiros. Esse foi o espírito captado por uma pesquisa encomendada ao Instituto Ibope pelo Movimento Todos pela Educação alguns meses antes da eleição de Dilma. Para 63% dos entrevistados, a saúde deveria ser a prioridade número 1 do próximo presidente.

Deveria ser, mas não será. Por várias razões e interesses. Segundo o Banco Mundial, o Brasil gasta em saúde cerca de 8% do PIB. A Argentina gasta 10%. O Chile (6,2%) e o México (5,9%) gastam menos, mas têm indicadores de saúde melhores que o Brasil. Gastam menos dinheiro, mas gastam melhor. São bons de gestão.

É preciso exigir que o governo gaste mais e melhor em saúde. Ao mesmo tempo, é preciso entender que essa tarefa não é exclusiva do governo. Há muita coisa que a sociedade organizada pode fazer. Não basta só reclamar. É preciso agir como tantos espíritos inquietos que conseguem melhorar a qualidade de vida de comunidades inteiras e fazer história. O segredo deles é o inconformismo de resultados.

É o caso, por exemplo, do oncologista Sérgio Petrilli, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Em 1988, ele visitou nos Estados Unidos o Hospital St. Judes, na cidade de Memphis. Ficou pensando por que razões aquele modelo não poderia dar certo também no Brasil. Descobriu que poderia e que sonhar – com os pés no chão – não faz mal à ninguém.

Foi assim que surgiu o GRAACC, o Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer, a ONG criada por ele em 1991. Em 20 anos, a experiência se provou eficaz. É um caso de sucesso baseado em três pilares: boa gestão, excelência média e científica e voluntariado organizado. Poderia ser reproduzido em qualquer lugar do Brasil. Basta querer.

“Não podemos aceitar que as crianças morram de câncer só porque são brasileiras”, diz Petrilli. Em vez de só reclamar do governo, ele teve a iniciativa de unir a universidade, os empresários e os voluntários na tarefa de preservar a vida.

Nas últimas décadas, o mundo conquistou muitas vitórias no combate ao câncer infantil. Em 1970, cerca de 75% das crianças com leucemia morriam nos Estados Unidos. O insucesso era a regra mesmo entre as famílias com condições financeiras de buscar o melhor tratamento possível. Hoje, 73% sobrevivem.

O câncer, a principal causa de morte por doença na população entre 5 e 18 anos, é um evento raro. Corresponde a menos de 3% de todos os casos da doença registrados no Brasil. A cada ano, surgem cerca de 10 mil casos novos.

É um câncer cheio de peculiaridades. Sob a lente do microscópio, os tumores infantis têm a aparência de tecidos fetais. Um tumor de rim, por exemplo, é composto de células embrionárias de rim. Antes que elas tivessem tido a chance de se desenvolver e se transformar numa célula renal com uma função específica, viraram tumor.
  

Isso explica por que bebês e crianças tão pequenas podem ter câncer antes que o estilo de vida inadequado tenha tido tempo de atuar sobre eles e desencadear a doença. A hipótese é que o desarranjo celular que leva ao câncer tenha sido provocado por substâncias químicas com as quais a mãe teve contato durante a gravidez.

Várias linhas de pesquisa buscam revelar quais são essas substâncias. Há muitos suspeitos – entre eles até as pastilhas usadas em repelentes elétricos de mosquito – mas nenhuma condenação. Seja qual for a causa da mutação que origina o tumor, ele vai crescendo silenciosamente durante a gestação e os primeiros anos de vida, até surgirem os sintomas.

A compreensão de que os tumores infantis são muito diferentes dos adultos contribuiu para as vitórias recentes contra a doença. Os anos 90 trouxeram descobertas genéticas que foram rapidamente incorporadas ao dia-a-dia dos consultórios.

No Brasil nem sempre é assim. Falta diagnóstico precoce e tratamento adequado. É aí que a criança sofre o ônus de ser brasileira. É contra essa regra que Petrilli decidiu se rebelar. No GRAACC, cerca de 70% dos pacientes são curados.

Os índices de cura poderiam ser ainda mais elevados se as crianças chegassem em fases mais precoces da doença. “Cerca de 30% dos pacientes com tumores ósseos chegam com metástase nos pulmões. Na Alemanha, esse índice é de 10%”, diz Petrilli.

Isso é sinal de que falta acesso ao sistema de saúde e de que falta informação aos médicos que prestam o primeiro atendimento. Poucos desconfiam de câncer. Para conhecer os principais sinais, acesse o site do GRAACC. https://www.graacc.org.br/o-cancer-infantil/sinais-e-sintomas.aspx

No ano passado, 2,5 mil crianças e adolescentes foram atendidos na instituição. Cerca de 90% eram pacientes do SUS. Felizmente, o GRAACC não pára de crescer. A casinha acanhada de 1991 se transformou, em 1998, num hospital completo (o Instituto de Oncologia Pediátrica).

Em meados de 2012, novas instalações estarão concluídas num terreno doado pela prefeitura de São Paulo. O hospital ganhará mais 4,2 mil m². Além do atendimento que já é feito hoje, a instituição contará com um aparelho de radioterapia dos mais modernos. Os planos de expansão prevêem que até 2015 o GRAACC ocupe 32 mil m².“Seremos um dos melhores centros de alta complexidade na América Latina”, diz Petrilli.

Como conseguiram? O GRAACC tem uma enorme área de captação de recursos. Várias empresas doam à instituição parte do Imposto de Renda devido. Inúmeras campanhas criativas fazem crescer as doações da sociedade. A parceria com o Mc Donald’s é só uma delas. O evento Mc Dia Feliz rendeu em 1993 o equivalente a R$ 100 mil reais. Em 2011, foram R$ 4,2 milhões.

As decisões na instuição são tomadas por um colegiado. Participam os empresários responsáveis pela gestão, os médicos, os voluntários. “Médicos são coorporativistas e empresários são mandões”, diz Petrilli. “Fui aprender a fazer planejamento estratégico, entender o que é core business e outras coisas”. Por outro lado, os empresários também aprenderam quais são as necessidades dos médicos, dos cientistas e dos voluntários. É uma aliança que deu certo.

“Nosso grande desafio é tratar todo paciente com o máximo de qualidade. Tratá-lo como se fosse um paciente particular. A questão aqui é o resgate da cidadania’, diz Petrilli.

As famílias atendidas no GRAACC reconhecem isso. A inspetora de qualidade Rozeli Aparecida Muniz sai de Carapicuíba, na Grande São Paulo, todos os dias às seis da manhã. Depois de enfrentar uma hora e meia de congestionamento, finalmente chega à instituição com a filha Ana Carolina.

A menina de 8 anos sofre de leucemia. Antes de chegar ao GRAACC, a família passou pelo roteiro clássico de desatenção à saúde tão comum no Brasil: diagnósticos errados, falta de acesso a exames e internação. Agora isso é passado. “Para mim é Deus no céu e o GRAACC na Terra”, diz Rozeli. “A gente não se sente no hospital. É um lugar que nos dá força”.

Ana Carolina adormece enquanto recebe a medicação na Quimioteca, um espaço colorido, cheio de livros e brinquedos, cuja intenção é reduzir o impacto do tratamento. Outras crianças brincam ou conversam.

Pela ótica de quem conhece a realidade da saúde pública brasileira, os pacientes do GRAACC parecem privilegiados. Até quando vamos aceitar que o tratamento correto, eficaz, gentil e respeitoso seja um direito de poucos?

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